26 de abril de 2021

DOM JOÃO 6º DEIXAVA O BRASIL HÁ 200 ANOS, COM LEGADOS!

(Anna Virginia Balloussier – Folha de SP, 25) João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, o dom João 6º, tinha as tropas napoleônicas em seus calcanhares quando decidiu se mudar para o Brasil. Chegou em 1808 e ficou 13 anos na ex-colônia que, durante essa temporada, promoveria a Reino Unido de Portugal.

Esta segunda-feira (26) marca o bicentenário de sua partida do território que um ano depois, sob rédea de seu filho dom Pedro 1º e com sua complacência, declararia independência da coroa portuguesa. 

Se o imaginário popular guardou a imagem de um glutão que escondia pedaços de frango no bolso e tinha pavor a banho, a passagem de dom João pelo Rio de Janeiro alavancou um projeto ainda imberbe de nação e, de quebra, deu um banho de loja na nova sede da corte real.

Vêm do que historiadores chamam de período joanino instituições até hoje centrais no país, como a Polícia Militar e o Banco do Brasil.

O primeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro, também é obra de dom João, que instituiu a Imprensa Régia no ano em que se mudou para as Américas. Dom João leva crédito até por popularizar o carioquíssimo hábito de ir à praia.

“Embora tenha sido retratado por historiadores antimonarquistas do início do século 20 como uma figura grotesca, dom João é hoje considerado o mentor do Estado brasileiro”, diz a historiadora Mary Del Priore, com farta obra sobre o passado nacional. “Além de ter enganado Napoleão com sua partida abrupta, ele elevou o Brasil a Reino Unido e era considerado hábil político.”

Não que o monarca não tivesse seu lado pitoresco. Conta-se que tamanho era seu pavor de trovões que João se enrolava nas cortinas do palácio para não ouvir o estrondo, lembra Del Priore. Também tinha “apetite pantagruélico”: devorava até 12 pratos diferentes a cada refeição. Os acompanhamentos obrigatórios eram frutas, queijos, doce e pães.

Filho zeloso, João levava dona Maria 1º para passear na sua fazenda Santa Cruz, onde saboreavam mangas juntos. “Quando a rainha morreu, ele se desolou e passou três dias sem se alimentar, em total desespero e saudade”, afirma a historiadora. Passou de príncipe regente a rei depois disso.

Na mesma granja, um carrapato picou a perna de João. A ferida infeccionou, e o paciente seguiu uma recomendação médica então comum: sanar feridas com o iodo marinho do mar. Passou a tomar banhos de mar, o que ainda não era costume dos cariocas.

Para o tratamento, enfiava-se numa caixa de madeira perfurada, molhando só partes do corpo. Ele esperava assim evitar o ataque de crustáceos nas águas da praia do Caju, próxima à Quinta da Boa Vista, a residência real.

A praia sumiu com a construção da ponte Rio-Niterói. Já a Quinta, erguida em 1803 por um traficante de negros escravizados e doada para a família imperial em 1808, existe até hoje. Quem quase desapareceu foi o Museu Nacional, abrigado no terreno e parcialmente destruído num incêndio 200 anos após ser fundado pelo rei João.

Com a corte vieram as idiossincrasias de dom João, mas também o aparelho de um Estado soberano: a alta hierarquia civil, religiosa e militar, aristocratas e profissionais liberais, artesãos qualificados, servidores públicos.

A capital ganhou a Biblioteca Real, a Academia Real de Belas Artes, a Imprensa Real e a Academia Militar. A abertura dos portos para nações amigas de Portugal, em 1808, encerrou a relação comercial exclusiva com a metrópole e dinamizou a economia local.

A cidade teve também um upgrade de estradas, iluminação pública e uma administração pública mais estruturada que, segundo Del Priore, “incorporou muitos brasileiros, inclusive afrobrasileiros e afromestiços”.

“A transferência da corte mudou a maneira como as pessoas dos dois lados do Atlântico entendiam a situação do Brasil, que deixou de ser uma colônia”, afirma a historiadora Kirsten Schultz, que no livro “Versalhes Tropical” se debruça sobre a vinda do clã real para os trópicos. “Afinal, um rei não poderia viver em uma colônia porque era um território de status inferior.”

Antes de 1808, a capital tinha ruas apertadas e casas simples, a maioria sem calçamento. Nada digno de uma monarquia. Ao aportar no Rio, o regente foi recebido com ruas cobertas de areia, ervas e flores, conforme narrou o cônego imperial Luiz Gonçalves dos Santos, o Perereca, padre-cronista daqueles tempos.

A cidade estava em festa. Sinos badalaram nas igrejas, fogos de artifício coloriram o céu e um coreto entoou “melodiosas vozes instrumentais como vocais”, segundo Perereca.

Com dom João no pedaço, o Rio provou do “lifestyle” cosmopolita. Para abrigar os milhares de recém-chegados numa cidade de 60 mil habitantes, um tanto de gente acabou desalojada —incluindo parte da elite que vivia em suntuosas chácaras. O despejo por ordem real foi batizado de “aposentadoria”.

O desembarque daquele homem baixo, com papadas e um ventre esférico, com coxas roliças que desgastavam o calção de seda, empurrou o Brasil para uma modernidade inédita. O Rio pré-dom João foi para o brejo: a nova administração aterrou pântanos e abriu ruas mais largas e planejadas.

Apreciador de óperas, o regente ordenou a construção do Teatro Real de São João (atual João Caetano). Inaugurada em 1813, a casa abrigou “Don Giovanni”, ópera de Mozart encenada pouco após sua estreia, em Viena.

Embrião da PM, a Polícia da Corte foi fundada em 1809. Os 218 oficiais da primeira leva substituíram quadrilheiros, homens que faziam a patrulha local munidos de lanças e bastões.

Schultz aponta que o policiamento foi concebido para, em parte, punir escravizados. “As preocupações do primeiro intendente de polícia com o que ele chamou de ‘civilização’ e ‘segurança pública’ também levaram a ações repressivas contra os negros livres, incluindo trabalho forçado. A presença da corte desafiou a ideia de que o Brasil era uma colônia de Portugal, mas reafirmou o colonialismo gerado pelo domínio português.”

Dom João dava todos os sinais de que veio para ficar de vez. “Isso contribuiu para criar na Europa a impressão de que pessoas da maior estatura, como uma das dinastias reinantes, podiam viver com certo conforto nos trópicos”, diz a historiadora Isabel Lustosa, do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa e autora de livros sobre o período joanino.

“Tudo isto elevou a moral dos brasileiros e lhes deu força para resistir às tentativas de retrocesso que se seguiram à partida do rei.” O regente pródigo a Portugal voltou, ainda que a contragosto, pressionado pelos conterrâneos, que atravessavam a liberal Revolução do Porto.

Em 1822, vingou o clamor nacional: independência ou morte.