FHC: “O SISTEMA POLÍTICO PARTIDÁRIO BRASILEIRO ACABOU, ACABOU”!
Entrevista de FHC ao jornal português PÚBLICO, em 22/04/2017.
FHC não deixa dúvida que a implosão partidária, produto da operação Lava-Jato, atingiu também o PSDB, que não tem mais como sustentar um espaço de tercius entre o PMDB e o PT. E que hoje se depende de personagens.
1. Na sua opinião, o que é que isso diz do sistema político partidário brasileiro que o PT não tenha outro candidato que não seja Lula da Silva?
R- O sistema político partidário acabou. Acabou!
2. Acabou tudo? Acabaram todos os partidos?
R- Não, os partidos vão continuar lá, mas perderam a predominância que tinham porque mudou a cabeça das pessoas. Eu acho prematuro fazer apostas sobre quem vai ganhar, mas não é prematuro os partidos perguntarem: por que é que eu cheguei a esse ponto? É uma crise de confiança.
3. E vê os partidos a fazer esse exercício no Brasil?
R- Não estão fazendo. Eu escrevi que o algoritmo da política mudou. O que mexe com as pessoas para votar é outra coisa hoje. A sociedade mudou, fragmentou-se muito e os partidos mais ainda. Mas não há mais a correspondência que existia no passado entre a sociedade e o partido. No Brasil, a fragmentação do Congresso vem junto numa fragmentação da sociedade só que não há uma correspondência entre um e outro. E não tem uma estrutura política que seja capaz de unir.
4. Como se desata esse nó?
R- Precisamos de lideranças. Hoje as pessoas já não se mobilizam em função de interesses partidários e políticos em sentido estrito, mobilizam-se eventualmente por causas: a paz, a participação das mulheres, a ecologia, a moral – esse vai ser um factor grande na situação brasileira, “eu sou a favor de um comportamento mais transparente, eu não quero mais saber de político que enrole”. O político de modo geral enrola no modo de falar. Os que estão a ganhar no mundo de hoje, inclusive no Brasil, são aqueles que vão cara a cara, dizem o que querem, o que pensam, o que são. Não dizem que são uma coisa e fazem outra, isso desmoraliza.
5. Enrolar, na política, é a maneira de não correr riscos.
R- Mas tem de arriscar. O enrola não funciona mais. Você tem de abrir o jogo. Não adianta mais você esconder, porque tem isso aqui [aponta o smartphone], tem a rede social, tem os media…
6. O Presidente diz-nos que não vê os partidos a fazer essa reflexão, mas ou eles a fazem antes da eleição que vem, ou o poder político, mesmo com um Presidente diferente, acabará mais ou menos da mesma maneira.
R- Mas quem vai ser eleito provavelmente em 2018 será alguém que será capaz de dizer e de fazer essas coisas.
7. Vê alguém no Brasil que tenha essa capacidade de liderança?
R- Vou dizer como o [prefeito de São Paulo] João Dória ganhou a eleição. Ele é um empreendedor, é rico. Foi para a campanha e disse que ele era isso mas que também era joão trabalhador. Há um modo de comunicação com o povo que é diferente. O próprio Lula tinha uma capacidade de se comunicar pelo que ele era. Agora estão a mostrar, na Lava Jato, que ele não era o que ele dizia que era. Porque é que Jair Bolsonaro, uma pessoa que queria fuzilar-me quando eu era Presidente, tem tanto apoio? Porque ele é afirmativo. Ele não diz que é de direita, ele diz que é a favor de matar bandido. E isso dá voto. Tem limites, mas dá voto. Não estou a dizer que eu goste disso. Mas é a sociedade como ela é hoje.
8. E essa sociedade tem crescido na bancada da bala, na bancada evangélica…
R- Sim, a representação política cresceu por aí. Mas quem mais cresceu na última eleição foi o PSDB, o que não garante que vá crescer mais depois. Hoje tudo no Brasil está um pouco entre parêntesis. Tudo vai depender do posicionamento que seja atribuído não aos partidos mas às pessoas. E vai ser preciso mexer nas instituições. Não se pode governar com 28 partidos no Congresso.
9. Mas os partidos são indispensáveis.
R- São indispensáveis mas não podem ser 28. Não há 28 posições políticas, eles não correspondem a uma diferenciação real.
10. Acha portanto que é preciso mexer nas regras do sistema político e da eleição do Congresso?
R- É preciso, e já há leis nesse sentido.
11. E já agora, face a tudo o que tem acontecido, é preciso mexer nas regras do poder judicial?
R- O Supremo Tribunal ganhou proeminência no Brasil, na medida em que o executivo perdeu prestígio e o Congresso também. Então as pessoas defendem-se dizendo que o judiciário está com muito poder. A situação não se resolve mudando na lei o poder do judiciário, resolve-se elegendo pessoas que tenham legitimidade e possam ter uma posição respeitada, até para o judiciário. Eu não vejo que haja uma distorção do judiciário.
12. Numa intervenção em Lisboa, em jeito de resposta às notícias que davam conta de uma alegada articulação sua, do Presidente Temer e Lula da Silva para abafar a Lava Jato, referiu-se ao ambiente de pós-verdade que vivemos hoje. Preocupa-o essa tendência de pós-factos e fake news?
R- Isso existe hoje porque há realmente muita informação e muita informação que não corresponde a nada. Aqui em Portugal, quando eu respondi, eu quis saber: qual é o facto? Você diz haver um acordo comigo, com o Lula e o Temer, baseado em quê? Estivemos juntos, mandamos algum emissário? Não há nada. Mas eu tenho que prestar atenção a essa pós-verdade, porque na política actual a pós-verdade é um fantasma que existe.
13. Pergunto se é só um fantasma ou se tem real influência no eleitorado.
R- Mas tem! O fantasma existe, nos media, nas redes sociais e também na política. Não se pode ficar soberbo, sem reagir às notícias fantasmagóricas. É preciso explicar. Neste caso, eu fartei de dizer “não é verdade”. Eu estive com o Lula quando morreu a mulher dele, foi uma coisa de ordem sentimental, pessoal. Mas eu não tive nenhuma conversa com ele a respeito de nada, muito menos sobre Lava Jato. Eu sou contrário a que se faça qualquer movimento de tentar abafar. Não se consegue, mesmo que se queira.
14. O ex-ministro Nelson Jobim diz que o senhor e Lula eram os únicos com capacidade para promover um entendimento nacional que evitasse a eleição de um “Trump caboclo”. Concorda? Acha que são os protagonistas com mais legitimidade para tentar corrigir o sistema brasileiro?
R- Se fosse assim até que seria fácil. Mas há mais interesses e mais parceiros em jogo. Eu nunca me neguei a conversar mas tem de se dizer sobre o quê: qual é a agenda? O melhor é ter uma base. Eu entendo a proposta do Jobim, ele está justamente querendo evitar que haja uma radicalização, mas os pólos não somos eu e o Lula. Eu pelo menos não sou pólo de nada e muito menos de um pensamento conservador que eu não tenho. Eu acho os partidos deviam conversar em redor de um tema: o que vamos fazer com a situação político-partidária, com o sistema eleitoral? É preciso ter clareza. Para reaver a confiança, você tem de jogar mais claro. O que a Lava Jato fez foi mostrar as bases reais do poder. Está mostrado. A minha posição nessa matéria é: agora quem tem de julgar é a justiça. Tem de começar a separar o joio do trigo. Tem de começar a distinguir, não para absolver, mas para penalizar de forma diferente e mostrar à sociedade que as pessoas não agiram todas da mesma maneira. Porque se tudo é igual, e tudo é ruim, então não tem política.
15. Quando todos os políticos são mencionados, todos os Presidentes incluindo o senhor, isso não promove essa suspeita de que é tudo igual? E não há o risco de, como dizem no Brasil, dar em pizza [não dar em nada]?
R- Não pode, se não foi um esforço inútil. E não vai virar pizza. Já houve consequências. Quantos estão presos? Como eu não sou Torquemada, eu não acho que isso se resolva pondo todo mundo na cadeia. O país tem de ser dirigido, tem que ter gente capaz de fazer esta mediação, em nome do interesse público. Os partidos ou os líderes que mostrarem isso vão ter voto.