RECONCILIAÇÃO É DIFÍCIL PORQUE CONFRONTO FOI LONGE!
(María Matilde Ollier, doutora em ciência política pela University of Notre Dame e diretora do doutorado em Ciência Política da Escola de Política e Governo da Universidade Nacional de San Martín – O Estado de S. Paulo, 17) Para entender a crise, ainda em desenvolvimento, que ocorre na Argentina, é preciso voltar a seus antecedentes distantes e imediatos.
Os primeiros referem-se a uma anomalia política instalada desde a origem do atual governo pelo qual a vice-presidente, Cristina Kirchner, elege seu companheiro de chapa, Alberto Fernández, como presidente. Desta forma, ela estava em condições de retornar ao poder, algo que seus 30% de fluxo eleitoral e seu perfil radicalizado não possibilitavam. Fernández, um moderado, deu-lhe os 20% restantes.
A aposta ficou completa com a participação de outro peronista, Sergio Massa, que havia rompido com Cristina, derrotando-a, em 2013, na poderosa Província de Buenos Aires.
O experimento, um “panperonismo” feito de seus diferentes fragmentos, não só carecia de um único líder, mas também tinha uma liderança de duas faces: Cristina Fernández Kirchner (CFK) detinha o poder real (ela comanda Buenos Aires, preside o Senado com o próprio quórum e seu filho é o chefe do bloco peronista na Câmara dos Deputados) e o poder formal do presidente, sem qualquer pretensão de construir o próprio espaço.
O duplo comando teve repercussões na gestão do governo, quando a vice-presidente passou a intervir, impondo sua radicalização. E, aos poucos, foi se resolvendo a seu favor, não só porque todos os ministérios contavam com figuras de seu rebanho, mas também porque CFK expressou publicamente a Fernández a existência de “funcionários que não trabalham”, ocasionando a saída da ministra da Justiça (uma área sensível para CFK, que responde a vários processos judiciais).
Na mesma época, o ministro da Economia não pôde demitir um subsecretário respaldado pela vice, entre tantos outros episódios. As tensões entre cristinistas e albertistas tornaram-se um problema político e de gestão, somando-se aos inúmeros erros presidenciais na luta contra a covid e nas áreas educacional, econômica e social.
Nesse quadro, o gatilho imediato emerge. Antes das eleições, CFK alertou o presidente da necessidade de fazer mudanças no gabinete para melhorar a atuação do governo e, aliás, avançar sua participação: o chefe da Casa Civil e o ministro do Turismo deveriam ser chefes da lista de candidatos na Província de Buenos Aires e na própria capital.
O presidente recusou, colocando dois outros candidatos seus nesses lugares. A fórmula “panperonista”, útil para vencer as eleições presidenciais de 2019, provou ser um fracasso no governo, conforme revelado pela derrota esmagadora – em 17 das 24 Províncias – nas eleições primárias de domingo.
Na tentativa de reverter os resultados das eleições de novembro, a vice-presidente voltou a propor mudanças urgentes, mirado o chefe de gabinete. No entanto, o presidente considerou que elas deveriam ser feitas após as eleições.
Além das duas versões que circulam sobre se, na noite de segunda-feira, os dois chefes de governo organizariam mudanças em novembro ou não, uma série de funcionários importantes, incluindo ministros, como o do Interior, apresentou sua renúncia, alguns informalmente, pegando de surpresa Fernández, que descobriu através da mídia. Desencadeia-se uma crise no governo, latente desde a sua origem, que não é apenas produto da derrota, mas também do desígnio governamental que o levou à Casa Rosada.
Em vez de buscar soluções, a resposta do peronismo é um confronto entre suas duas figuras-chave. Com o passar das horas, o presidente recebeu o apoio de vários governadores peronistas, da Confederação-Geral do Trabalho e de alguns movimentos sociais.
Como Fernández não aceitou imediatamente as demissões (formais ou informais são um detalhe), a queda de braço continua, embora a ruptura da coalizão não pareça ser o caminho escolhido por ele. Diante do fracasso eleitoral, essa crise, em meio a uma eleição que ainda não terminou, enfraquece em vez de fortalecer o governo.
A conciliação exige que cada um abra mão de algo. Nesse caso, o desafio que virá passa fundamentalmente pela recomposição do vínculo entre o presidente e sua vice – algo bastante difícil em razão de quão longe foi o confronto.