JOE BIDEN E HANNAH ARENDT!
(Celso Lafer – O Estado de S. Paulo, 20) Em 28 de maio de 1975 o senador Joe Biden escreveu uma pequena carta a Hannah Arendt para solicitar o envio da conferência que ela pronunciara em Boston em foro voltado para discutir o bicentenário dos Estados Unidos. Indicava que tinha tido notícia da reflexão arendtiana em artigo de Tom Wicker e observava que o conhecimento do texto era de seu interesse como integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado.
A carta integra os arquivos de Arendt, é de conhecimento público e teve alguma circulação no correr da campanha presidencial deste ano nos Estados Unidos. É, por si só, um exemplo de que Biden desde o início de sua vida pública tinha antenas para os grandes desafios do sistema político americano.
É sem conta o número de motivos que me levam a olhar com simpatia a eleição de Joe Biden, o que significa para os valores e a prática da democracia e o que deverá representar para um papel mais construtivo dos Estados Unidos no mundo. Para um estudioso da obra de Arendt, e sem forçar a mão, é natural buscar no seu texto de 1975, que interessou a Biden, elementos que contribuem para o entendimento do alcance da sua vitória eleitoral.
O texto de Arendt, na versão para o português, intitula-se Tiro pela culatra, para indicar que não se pode escapar da avaliação e das consequências de uma crise da república americana, tema que abordou. Hoje integra a coletânea de seus ensaios reunidos no livro Responsabilidade e Julgamento, organizado por Jerome Kohn e publicado em 2003.
O texto de Arendt resulta de suas reflexões sobre um momento de depreciação da vida política americana, que foi o da crise da presidência Richard Nixon e seus antecedentes, que acabou na sequência, observo eu, levando à eleição de Jimmy Carter, com sua dimensão de purgação moral. Tem como pano de fundo o livro de 1972, significativamente intitulado Crises da República, no qual tratou da mentira na política, da desobediência civil e da violência, e como lastro o seu Sobre a Revolução. Neste ela destacou que foi a Revolução Americana que implantou a primeira República moderna, instaurou o governo das leis por meio de uma duradoura Constituição dotada de autoridade que, atenta à pluralidade da condição humana, ensejou a gramática da ação e a sintaxe do poder.
As instituições democráticas republicanas, por mais sólidas que sejam, como as dos Estados Unidos, exigem para a sua durabilidade a prática de costumes democráticos, nisso se incluindo o virtuoso zelo do bem da República.
A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela “alma” dos Estados Unidos. Nessa batalha, Biden personificou uma afirmação de continuidade de valores e das instituições americanas, de suas práticas e seus costumes. Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do soft power de atração dos Estados Unidos. Além do mais, foi um esforço de operar um regime do “governo dos homens”, no caso, ele, em detrimento do “governo das leis”. É, por via de consequência, uma faceta da crise da República. Para essa dimensão o texto de Arendt oferece subsídios relevantes.
São muitos os pontos importantes da análise arendtiana de 1975 que comportam analogia com o deletério que a presidência Trump instalou na “alma” e no espírito das instituições americanas. Destaco: a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e nesse caminho pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados; o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência; o inserir da criminalidade nos processos políticos do país; o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder; o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio; o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (palavras de Arendt em 1975!); o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.
Em síntese, a fabricação da imagem como política global norteou a presidência Trump, atropelando no seu ímpeto as instituições republicanas dos Estados Unidos e os seus costumes e práticas. A fabricação da imagem como política global, realçou Arendt, se insere “no imenso arsenal da insensatez humana”. A derrota eleitoral de Trump foi o choque da realidade do despropósito de sua conduta.
Recolocar a República americana nos seus trilhos será a tarefa de Biden e de seus colaboradores. Não será tarefa fácil, como é sabido, e não apenas pela impregnação que Trump retém na sociedade americana e no Partido Republicano, mas também pelo radicalismo das polarizações que permeiam a vida do país e a complexidade do desafio da sua pauta. Nesse contexto, no entanto, as lições de Hannah Arendt de 1975 serão úteis a partir de janeiro de 2021.