19 de janeiro de 2021

“GOLPE” AJUDARÁ OS EUA!

(Moisés Naím – O Estado de S. Paulo, 11) O 6 de janeiro foi um dia muito ruim para o presidente Donald Trump e muito bom para a democracia americana. Os mortos e feridos serão recordados como uma consequência trágica, fomentada pelo presidente. Mas o que aconteceu nesse dia — e não me refiro somente à tomada do Congresso pelos seguidores de Trump — poderia marcar o começo de um importante período de renovação e fortalecimento para a democracia desse país.

No último 6 de janeiro, as leis, instituições e normas que nos Estados Unidos limitam o poder do presidente foram postas à prova. Por sorte, sobreviveram à tentativa de Donald Trump de continuar na Casa Branca apesar de ter perdido as eleições.

Isso não quer dizer que a democracia americana tenha passado incólume por essa dura prova. Ela já estava muito enfraquecida e, ainda que tenha fracassado, o autogolpe de Trump e seus cúmplices a deixaram ainda mais golpeada e rasgada. O desprestígio internacional é enorme.

Mas, como vimos, muito mais desprestigiados ficaram Trump, alguns senadores e deputados do Partido Republicano, assim como as forças antidemocráticas que participaram da tentativa de golpe. A tomada do edifício do Congresso por grupos violentos atiçados pelo presidente foi, obviamente, um evento histórico. Algo assim não acontecia desde 1814, quando forças britânicas incendiaram o Capitólio. Por sorte, desta vez a tomada não prosperou.

Nesse dia, aconteceram coisas muito importantes para a democracia dos EUA. Na manhã de 6 de janeiro, soubemos que os candidatos ao Senado pelo Estado da Geórgia Raphael Warnock e Jon Ossoff haviam derrotado seus rivais do Partido Republicano.

Warnock é a primeira pessoa de raça negra que chega ao Senado representando a Geórgia — um Estado do sul do país, com um grande histórico de segregação e discriminação racial. Jon Ossoff, de 33 anos, será o primeiro senador judeu eleito por um Estado do sul desde os anos 1880 e o senador mais jovem do Partido Democrata desde que Joe Biden foi eleito senador, há mais de meio século. Mas a vitória eleitoral desses dois candidatos representa um marco histórico que vai mais além do ineditismo de sua eleição.

Com esses votos adicionais, o Partido Democrata, que já detém maioria na Câmara dos Deputados, também terá maioria no Senado. Isso não acontecia desde 1995. O controle do Congresso dará a Joe Biden mais liberdade e celeridade nas nomeações de cargos de seu governo que requerem a aprovação do Congresso. O mesmo vale para a nomeação de juízes federais, que o presidente propõe, e o Congresso pode aprovar ou rechaçar. E a possibilidade de iniciar profundas reformas na economia, na política e no funcionamento do Estado.

Esse dia repleto de surpresas também nos trouxe uma carta e um discurso que — mesmo sem a dramaticidade televisionada da tomada do Capitólio — mudaram o curso da história.

Mike Pence, que, enquanto vice-presidente, também tem a função de presidir o Senado, enviou uma carta aos colegas senadores. Na carta, o até então submisso, obediente, cafona, adulador e, seguramente, sofrido Pence informa aos senadores que cumpriria rigorosamente, com o limitado poder que lhe outorga a Constituição, o procedimento de certificar a eleição de presidente e vice-presidente do país.

O que Pence não diz em sua carta, mas disso todo mundo sabe, é que não era essa a ordem de seu chefe, o presidente. Trump repetiu publicamente que esperava que Pence (“que me deve tanto”) apoiasse a fraude eleitoral que ele havia montado em cumplicidade com os senadores Ted Cruz e Josh Hawley. Talvez pela primeira vez em quatro anos, Mike Pence protegeu mais a democracia de seu país que os interesses pessoais de Donald Trump. Se tivesse acontecido o contrário, o autogolpe poderia ter mais possibilidades de triunfar.

A outra surpresa foi o discurso de Mitch Mcconnell, o líder dos republicanos no Senado. Durante quatro anos, Mcconnell apoiou Donald Trump sem reservas. No dia 6 de janeiro, deixou de fazer isso. Na sessão do Senado na qual se começava a discutir a contagem dos votos eleitorais e antes que a invasão do Capitólio impedisse a continuidade do debate parlamentar, Mcconnell proferiu um discurso devastador, que colocou em evidência e efetivamente destruiu o autogolpe que Trump e seus seguidores estavam perpetrando. Se Mcconnell tivesse se alinhado com os golpistas, estaríamos hoje falando em outro tom sobre a democracia americana.

Os defeitos dessa democracia estão à vista. As ameaças que enfrenta, também. As reformas necessárias são conhecidas — e urgentes. Serão levadas adiante? Terão êxito? Não sabemos. Mas o que sabemos, sim, é que o 6 de janeiro de 2021 poderia ter passado para a história como o dia em que os Estados Unidos começaram a repensar sua democracia.