17 de março de 2022

APÓS APOSTAS ERRADAS, BIDEN ACERTA NA UCRÂNIA E REUNIFICA OCIDENTE EM TORNO DOS EUA!

(Guga Chacra – O Globo, 13) A experiência em política externa de Joe Biden ao assumir a Presidência era bem superior à dos seus antecessores. Bill Clinton e George W. Bush, que haviam sido governadores, não lidavam com temas internacionais. Barack Obama, senador em seu primeiro mandato quando venceu as eleições presidenciais, tampouco havia estado envolvido com as grandes crises mundiais. Donald Trump, um empresário controverso e uma estrela de TV, entrou na política diretamente como presidente.

Já o currículo de Biden incluía cerca de três décadas como senador. Presidiu a Comissão de Relações Exteriores do Senado entre 2001 e 2003 e depois entre 2007 e 2009, quando assumiu como vice-presidente. No final dos anos 1990, era líder da minoria democrata na comissão. De origem irlandesa, teve atuação importante nas negociações para a paz na Irlanda do Norte. Foi peça fundamental para a estratégia de Bill Clinton nos Bálcãs, tendo sido um dos articuladores dos bombardeios da Otan contra a Sérvia na Guerra de Kosovo. Apoiou a invasão de Bush ao Afeganistão depois do 11 de Setembro.

Uma das maiores manchas em seu currículo é o voto a favor da Guerra do Iraque. Como presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, deveria ter uma ideia mais profunda de que os argumentos do governo Bush para o conflito eram falsos — o Iraque não tinha armas de destruição em massa, e Saddam Hussein não tinha ligação com a rede terrorista al-Qaeda. Além disso, a queda do ditador levaria ao fortalecimento automático de seu maior inimigo, o Irã.

Ironicamente, Biden fora contrário à Guerra do Golfo, que em 1991 expulsou o Iraque do Kuwait e foi um dos raros sucessos militares americanos nas últimas décadas, no governo de Bush pai. Nos últimos anos como senador, chegou a ser criticado por defender a divisão do Iraque em uma federação de três regiões — uma xiita, uma árabe sunita e uma curda sunita.

Com todo esse histórico, Biden ainda ocupou o cargo de vice-presidente, onde ambicionava uma participação mais ativa na política externa de Obama, embora algumas vezes tenha sido deixado de lado pelo então presidente. Com um filho veterano de guerra, posicionou-se contra o aumento das tropas no Afeganistão, ao contrário de Hillary Clinton. A posição da então secretária de Estado prevaleceu, e Obama enviou dezenas de milhares de jovens para uma guerra que havia sido deixada de lado por Bush, mais focado no seu atoleiro no Iraque. Também considerava arriscada a ação para matar Osama bin Laden, mas Obama acabou agindo e as forças americanas conseguiram eliminar o fundador da al-Qaeda.

Ao assumir a Presidência, Biden desfrutava de respeito na área de política externa, apesar de o tema estar longe das prioridades da população americana naquele momento. O foco estava na pandemia e em questões internas, como a retomada da economia.

Para secretário de Estado, o escolhido foi Antony Blinken, que trabalhara no governo Obama, tendo sido um dos arquitetos da fracassada Guerra da Líbia e do fracassado armamento de opositores de Bashar al-Assad na Síria que acabou indiretamente fortalecendo milícias jihadistas. Para assessor de Segurança Nacional, a opção foi o jovem Jake Sullivan, visto como brilhante nos meios de política externa em Washington.

O objetivo de Biden era restabelecer o multilateralismo e retomar a aliança com os europeus depois do isolacionismo de Trump. As mudanças climáticas e a rivalidade com a China eram vistas como os grandes desafios externos. Apesar de ser um árduo defensor de Israel, não demonstrou ambição de tentar uma nova negociação entre israelenses e palestinos, e pouco interferiu quando mais uma guerra eclodiu em Gaza. Pretendia retornar ao acordo nuclear com o Irã, abandonado por Trump, e retirar as tropas do Afeganistão. Este último tópico nem sequer gerava discórdia nos EUA, já que a maioria da população apoiava a retirada negociada por Trump com o Talibã depois de 20 anos de conflito. Cabia a Biden apenas a implementação. Como o mundo todo viu, foi um fiasco total, com aquelas cenas de desespero no aeroporto de Cabul .

Os EUA foram humilhados, e Biden perdeu o respeito. Sua popularidade despencou dez pontos percentuais e nunca mais voltou a subir. Todo o processo foi desastrado, incluindo a falta de comunicação com os aliados europeus e os erros da Inteligência. Biden ordenou o ataque com drone contra o que seria uma célula do Estado Islâmico em Cabul — era uma família inocente, e sete crianças morreram.

Esta imagem de Biden incompetente e fracassado em política externa era a que prevalecia até os dias anteriores à invasão da Rússia à Ucrânia. O presidente, porém, não queria repetir os erros do passado. Insistiu diversas vezes, assim como seu secretário de Estado, com base em informações de inteligência, que a Rússia invadiria a Ucrânia. Muitos questionavam essas informações devido aos erros no passado, mas o presidente insistiu. Desta vez, estava correto.

Depois da invasão, Biden conseguiu unir o Ocidente e coordenar uma gigantesca resposta à agressão russa. As sanções foram duras, bem diferentes das impostas por Obama depois da anexação da Crimeia. Até a Alemanha, dependente do gás russo, e a Hungria, governada por um aliado de Putin, ficaram do lado dos Estados Unidos. O líder russo foi transformado em um pária e isolado internacionalmente. A Otan se fortaleceu.

Mesmo que todas essas ações tenham sido insuficientes para conter o ataque da Rússia, elas têm obtido sucesso em punir Putin. Biden reposicionou os EUA como líderes do Ocidente num mundo em que cresce a força geopolítica da China. Até seus adversários republicanos no Senado evitam críticas e consideram positiva a resposta do presidente americano. Ao trumpismo, restou dizer que Putin não invadiria a Ucrânia se ele fosse presidente. Talvez, mas não mencionam que isso ocorreria devido ao isolacionismo de Trump, suas críticas à Otan e a sua admiração pelo autocrata russo, a quem ele chamou de “gênio” até depois da invasão.

Ainda há, porém, riscos pela frente. A imposição de um embargo ao petróleo russo deve aumentar ainda mais a inflação nos EUA, que já está no seu nível mais alto em quatro décadas. Preços mais altos afetam negativamente a popularidade de qualquer presidente, mesmo com uma taxa de desemprego baixa como a atual. Embora sua estratégia no pós-invasão tenha sido pouco criticada, está longe de ser considerada uma vitória. Putin ainda está na Ucrânia, suas tropas seguem avançando e pessoas continuam morrendo.

Das metas de Biden quando assumiu, vemos que as tropas saíram do Afeganistão, mas em processo caótico; conseguiu retomar a aliança ocidental, mas depois de uma agressão de Putin à Ucrânia; negocia o retorno ao acordo nuclear com o Irã, ainda sem sucesso; voltou ao Acordo do Clima de Paris , mas não aprovou seu pacote de combate às mudanças climáticas no Congresso; e, claro, a China segue cada vez mais fortalecida, e agora tem a própria Rússia em suas mãos.