17 de fevereiro de 2020

AUTORITARISMO GANHA FORÇA NA AMÉRICA CENTRAL!

(André Duchiade – O Globo, 16) Ao encontrar oposição do Legislativo para aprovar um projeto que equipa melhor as forças policiais do país, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, tomou uma medida drástica no domingo passado. Após conclamar o povo à insurreição, ele entrou escoltado por militares armados com fuzis no prédio do Congresso, onde se sentou na cadeira do presidente da Casa e, depois de uma oração, deu aos deputados um ultimato de uma semana para a aprovação da proposta, que vence hoje. A intimidação foi o mais recente ato de debilitação institucional do Triângulo Norte, nome criado pelo Departamento de Estado americano para o trio El Salvador, Guatemala e Honduras. Na região, atormentada por disfunções crônicas, anuncia-se uma onda de endurecimento político. —Quando olhamos o panorama geral, há um conjunto de problemas, e é difícil estabelecer uma hierarquia entre eles. Cada país tem particularidades, mas o panorama geral é desolador. Há uma tendência crescente à militarização da sociedade, ao enfraquecimento da luta contra a corrupção e à centralização do poder — afirmou Victor Meza, diretor do Centro de Documentação de Honduras e ex-ministro do Interior do governo de Manuel Zelaya, deposto em 2009. Com taxas de homicídio altíssimas, economias precárias e corrupção alastrada, os países se tornaram, a partir de 2018, o ponto de partida de vastos contingentes de migrantes em caravanas rumo aos EUA. Grande parte dessas pessoas fugia da violência, sobretudo em El Salvador e Honduras, que registraram, respectivamente, o mais alto e o terceiro mais alto índice de assassinatos do mundo em 2017 (pouco abaixo do Brasil, a Guatemala também ficou entre os dez mais).

A maioria das mortes se relaciona ao crime organizado, ao narcotráfico e à disputa entre as quadrilhas. Proximidade dos mercados de droga da América do Norte, fronteiras porosas, alto grau de impunidade (95% de homicídios não resolvidos) e a abundância de armas depois das guerras civis dos anos 1970 e 1980 contribuíram para esse quadro, segundo a especialista salvadorenha Jeannette Aguilar. A falta de oportunidades econômicas, particularmente para os jovens, se relaciona à criminalidade. De acordo com o Banco Mundial, metade da população dos três países tem menos de 25 anos, tendência que deve se manter por ao menos 20 anos. A pobreza é persistente. Segundo os dados mais recentes do Banco Mundial, os gastos com programas de proteção social são de US$ 562 por cidadão por ano em El Salvador, de US$ 278 em Honduras e de US$ 258 na Guatemala. No Brasil, são de US$ 2.269. As mudanças climáticas tendem a acirrar os problemas, pois a região é muito suscetível a fenômenos extremos. Houve cinco anos seguidos de seca até 2018, afetando pequenos produtores de milho e feijão. Os problemas levaram, segundo o analista para a América Central do International Crisis Group, Tiziano Breda, a “altos níveis de desespero”: — As pessoas encontraram duas válvulas de escape: a agitação social e a emigração. Em Honduras, o único dos três países que não passou por uma guerra civil, a agitação se relaciona à falta de reconhecimento popular do governo, que, segundo Breda, “nunca superou o golpe de Estado” contra Zelaya — ele próprio acusado de buscar uma reeleição inconstitucional. Desde então, o Partido Nacional, de direita, esteve no poder, e o atual presidente, Juan Orlando Hernández, assumiu em 2014. No ano passado, Tony Hernández, irmão do presidente, foi condenado por tráfico de drogas em Nova York. A insatisfação com reformas nos sistemas de educação e saúde também levou a protestos. Em junho, Hernández, que já criara uma polícia ligada ao Exército e é acusado pela oposição de aparelhar o Judiciário, mandou os militares para reprimir as manifestações. Segundo a ONU, a repressão deixou 23 pessoas mortas. Denúncias de corrupção que desembocaram em protestos e endurecimento também tiveram lugar na Guatemala. Em 2017, o então presidente Jimmy Morales, que assumira o cargo uma no antes e o deixo uno mês passado, entrou em conflito com a Cicig, comissão da ONU instalada em 2006 para investigara corrupção no país, considerada uma das mais bem-sucedidas iniciativas na questão.

A Cicig chegou a delitos cometidos nos mais altos níveis políticos — e a denúncias envolvendo o irmão e o filho de Morales, além de suspeitas relacionadas ao financiamento de sua campanha. Morales entrou em conflito coma comissão até não renovar o seu mandato, que expirou em 2019. Em janeiro deste ano, assumiu Alejandro Giammattei, ex-diretor do sistema penitenciário guatemalteco. Sua plataforma prometeu trazer apena de morte de volta, “esmagar as gangues violentas, lutar contra a pobreza para parar a imigração e pôr um fim à corrupção nojenta ”. No poder, ele mandou os militares para combater as quadrilhas.

Dos três países, o caso considerado mais promissor era o de El Salvador. Na campanha, Bukele, um empresário do marketing de 38 anos que foi prefeito da capital e assumiu em junho de 2019, se vendeu como “um político descolado”. Sua campanha, por uma sigla de aluguel, usou extensamente as redes sociais. Sem apoio partidário nem legislativo, sua opção foi aproximar-se das Forças Armadas, elevadas a pilar da segurança pública. Bukele prometeu recuperar o centro das grandes cidades, combater a lavagem de dinheiro e cortar as comunicações entre os líderes das facções presos e os soltos. Segundo Breda, a despeito de suspeitas de que possa ter havido acordos com as quadrilhas para a redução dos homicídios, suas políticas “foram na direção correta em termos de segurança”. Embora os números oficiais não estejam disponíveis, o presidente se vangloria de que os homicídios caíram pela metade desde que assumiu, o que fez sua popularidade subir para mais de 80%.

O Plano de Controle Territorial, a lei de US $109 milhões que motivou a ocupação do Congresso, se inseria nesse quadro. Todos os partidos, exceto a FMLN, de esquerda, pretendiam aprovar a legislação, mas a Arena, de direita, disse que queria mais estudos. — Então, do nada, ele deu aquela demonstração de força, que preocupa e muda a imagem que tinha até então —disse Breda. Segundo Aleksander Aguilar Antunes, pesquisador da Universidade Católica de Pelotas e criador da rede O Istmo, sobre a América Central, a ocupação pode ter sido uma jogada política com vistas a angariar mais força e promover uma reforma constitucional para concorrer à reeleição, possibilidade inexistente hoje. Seus efeitos, contudo, são o fortalecimento de uma cultura autoritária. —Essa demonstração de força só é possível em função da super popularidade, que tem como a base a ideia de um governo forte e um líder empoderado. Essa espécie de cultura do autoritarismo está presente em vários lugares da América Latina hoje, não só na Central — disse Antunes. — Todos seguem na linha da repressividade e da instrumentalização das Forças Armadas.

“A última viagem de Jorge Alexandre Ruiz Dubón foi dentro do porão de um avião de carga. Caixão branco dentro de uma caixa de papelão. De Tijuana à Cidade do México. De Cidade do México a San Pedro Sula, a cidade menos pobre, mas a mais violenta de Honduras, o país de onde todo mundo quer escapar. (…) Assim regressou Jorge Alexander ao lugar que havia abandonado dois meses antes crendo que conseguiria chegar aos Estados Unidos.” A história de Dubón é descrita como “dramática” pelo repórter espanhol Alberto Pradilla, que a relata no livro “Caravana: Cómo el éxodo centroamericano salió de la clandestinidad” (sem tradução em português), escrito a partir da cobertura do primeiro grupo de centro-americanos que partiram em caravana de Honduras rumo aos Estados Unidos em 2018. —As caravanas são o símbolo de uma América Central despejada, que para ter uma vida digna teve que sair de seus países —disse Pradilla em entrevista ao GLOBO.

Era 12 de outubro de 2018 quando um grupo de 1.300 pessoas, organizadas via WhatsApp, mas sem liderança definida, se reuniu numa praça de San Pedro Sula e deu início a “um movimento de massas que colocou a migração centro-americana aos EUA no centro da agenda global”, escreve Pradilla. Em poucos dias, o grupo dobraria de tamanho, e até Tijuana, na fronteira norte do México, caminharia 4.736 quilômetros, dormindo em abrigos improvisados por organizações de ajuda humanitária ou, na maioria das vezes, na rua. —As caravanas são uma pequena representação de um êxodo que geralmente permanece na sombra. Elas existiram nos últimos 10 anos, mas nunca haviam feito algo maciço —explicou Pradilla. Segundo o Observatório Iberoamericano sobre Mobilidade Humana, Migrações e Desenvolvimento, entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2020 cerca de 300 mil imigrantes foram detidos no México e 84 mil deportados do país. Apenas 13 mil receberam autorização de residência. O restante foi forçado a regressar. Apesar disso, nada parece detê-los.

Diante da negativa do governo mexicano de abrir sua fronteira sul, Darwin José Juárez Calles, de 19 anos, se revoltou: “Senão nos abrem aporta, cruzaremos pelo rio”, disse, segundo relata Pradilla. O rio era o Suchiate, que separa a Guatemala do México. Agora mesmo tenho certeza de que uma salvadorenha, um guatemalteco, um hondurenho, estão fazendo as malas para enfrentar um caminho terrivelmente perigoso —disse o repórter. Violência e miséria estão na origem do movimento, que Pradill ad escreve no livro como “o êxodo dos pés doloridos, das pessoas exaustas, daqueles que ganham menos do que custa um Big Mac”. “Nada vai nos parar, porque Deus vai na frente. Assim como ele conduziu o povo de Israel, que abriu o mar, assim vai nos abrira fronteira. Que não se enganem o México ou os EUA”, disse a Pradilla Joel Madriaga, de 35 anos. O jornalista observa que Deus está “na boca de muitos imigrantes”, “em uma de cada três frases” que eles pronunciam. Quando se elegeu presidente mexicano, em junho de 2018, Andrés Manuel López Obrador prometeu que daria um novo tratamento aos imigrantes. Depois de sua posse, em dezembro daquele ano, “todos achávamos que estávamos diante de mudanças históricas”, disse Pradilla: —Lembro de policiais oferecendo água para os imigrantes com um sorriso no rosto. Pressionado pelo governo americano, que ameaçou impor tarifas ao México, López Obrador voltou atrás e converteu a Guarda Nacional, originalmente criada para combater o narcotráfico na fronteira norte, em uma polícia antiimigração. A situação piorou muito desde então, a ponto de o repórter começar a vislumbrar o fim das caravanas. — Não queria ser eu o responsável por enterrá-las, mas o governo mexicano está espalhando muitas notícias falsas de que elas estavam sendo promovidas pelos coiotes, e apressão dos Estados Unidos é forte — afirmou Pradilla.