16 de julho de 2020

IMUNIDADE DE REBANHO!

(Monica de Bolle – O Estado de S. Paulo, 15) A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública. Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.

Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.

A imunidade de rebanho clássica, como os modelos de agente representativo, partem do pressuposto de que a imunidade é uniformemente distribuída em uma dada população. Por força desse pressuposto, há uma forma simples para calculá-la. Os 60% a 70% de infectados para alcançar a imunidade de rebanho, supondo que o fator de reprodução do vírus causador da covid seja algo entre 2,5 e 3, são calculados a partir da fórmula proveniente da imunidade clássica. Há, porém, duas questões importantes a considerar. A primeira é que o fator de reprodução real do vírus só será conhecido quando a epidemia acabar. Por ora, temos apenas estimativas que variam de acordo com fatores diversos. A segunda é que a presumida uniformidade imunológica está associada à existência de uma vacina que confere imunidade ao vírus. Ou seja, a imunidade de rebanho clássica só tem sentido no contexto de uma vacina existente para determinar a cobertura crítica de um programa de vacinação, aquela cobertura que atinge a imunidade de rebanho.

Não temos vacina para o SARS-COV2, logo, a imunidade de rebanho clássica não é aplicável. Por esse motivo, não se pode partir do pressuposto de uniformidade imunológica. Parte-se, ao contrário, da heterogeneidade imunológica, elaborada de maneiras distintas em diferentes estudos. No entanto, premissas ainda são necessárias. No estudo da Science, há duas: a de que todos os infectados sobreviventes têm imunidade plena contra o vírus e de que essa imunidade é duradoura. Essas premissas, como a do agente representativo, são simplificações necessárias, do ponto de vista da pesquisa científica, para elucidar um aspecto daquilo que se busca entender. Como disse antes e insisto aqui, ambas carecem de evidências científicas para sustentá-las; isso não invalida um modelo que se propõe a avaliar os fatores que podem influenciar a imunidade de rebanho, mas invalida seu uso para defender a reabertura econômica prematura.

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas. Ele expõe a população desnecessariamente – sobretudo a mais vulnerável economicamente – ao risco de contágio, com consequências sobre a desigualdade. Ele põe em risco pessoas que podem vir a apresentar sequelas, tornando-as dependentes de um sistema de saúde sub-financiado e as retirando do mercado de trabalho caso apresentem problemas mais graves decorrentes da exposição ao vírus. Para resumir, o uso indevido dos cálculos e do conceito de imunidade de rebanho põem a economia em outro patamar de risco. Economistas não usariam modelos de agente representativo para recomendar políticas de combate a uma crise econômica aguda. Da mesma forma, tudo o que existe sobre imunidade de rebanho deve ser deixado em seu devido lugar: entre os pesquisadores e cientistas que buscam compreender um vírus novo em plena evolução.