15 de setembro de 2022

UCRÂNIA DERRUBA MITO MACHISTA DO TRUMPISMO!

(Paul Krugman – O Estado de S. Paulo, 14) Em 29 de agosto, Tucker Carlson, da Fox News, atacou a política do presidente Joe Biden em relação à Ucrânia. Ele afirmou, entre outras coisas: “Segundo qualquer medida verdadeira, com base na realidade, Vladimir Putin não está perdendo a guerra na Ucrânia. Ele está vencendo a guerra na Ucrânia”. Aliás, Carlson foi além, afirmando que Biden apoia a Ucrânia apenas porque pretende destruir o Ocidente.

O timing de Carlson foi impecável. Poucos dias depois, uma grande seção da linha de frente russa nas proximidades de Kharkiv foi sobrepujada por um ataque ucraniano. É importante notar que as forças de Putin não foram apenas obrigadas a recuar; parece que elas foram escorraçadas.

Conforme relatou o Instituto para Estudo da Guerra, entidade independente, os russos foram obrigados a uma “retirada desordenada, em pânico”, deixando para trás “grandes quantidades de equipamentos e suprimentos que as forças ucranianas podem usar”.

O colapso russo pareceu validar análises de especialistas que têm afirmado há meses que as armas do Ocidente têm alterado o equilíbrio militar em favor da Ucrânia, que falta desesperadamente ao Exército de Putin soldados qualificados, que as forças russas têm sido arruinadas pelo desgaste e por ataques de mísseis em suas áreas de retaguarda.

LIMITE.

Essas análises sugeriram que o Exército russo pode eventualmente chegar a um limite crítico de esgotamento, mas poucos esperavam que esse limite chegaria tão cedo e tão dramaticamente.

É verdade que Carlson e outros torcedores de Putin não são as únicas pessoas apegadas a ilusões sobre o sucesso russo. Existe toda uma escola de autoproclamados “realistas” que considera fútil a resistência ucraniana à Rússia e, apesar do fracasso do ataque inicial de Putin, passou os últimos seis meses conclamando a Ucrânia a fazer grandes concessões para uma potência russa supostamente superior.

Mas há algo especial a respeito do trumpismo abraçar a mística do poderio russo: uma visão de mundo que associa jactância de sujeito durão à eficácia. Essa visão de mundo distorceu a percepção da direita não apenas a respeito do Exército russo, mas também em relação à maneira de lidar com muitos outros temas. E vale perguntar de onde isso vem.

ELOGIOS.

Muitos republicanos admiram Putin há muito tempo – mesmo antes de Donald Trump dominar o partido. Em 2014, por exemplo, Rudy Giuliani afirmou sobre Putin: “Isso que é líder”. E Trump continuou a elogiar Putin mesmo depois que ele invadiu a Ucrânia.

Portanto, não é difícil perceber de onde vem a admiração da direita trumpista pelo putinismo. Afinal, a Rússia é autocrática, brutal e homofóbica, com um culto à personalidade construído ao redor de seu líder. O que há para desgostar?

Ainda assim, admirar os valores de um regime não significa ter fé em sua destreza militar. Enquanto defensor de uma rede de seguridade social, tenho em grande conta Estados de bem-estar social, como a Dinamarca. Mas não tenho absolutamente nenhuma opinião a respeito da eficácia do Exército dinamarquês (sim, existem Forças Armadas dinamarquesas).

Na direita, contudo, a aprovação de regimes autoritários está completamente vinculada a afirmações a respeito de sua destreza militar. Por exemplo, no ano passado, o senador Ted Cruz fez um tuíte comparando imagens de um soldado russo com pinta de durão e cabeça raspada com um vídeo de recrutamento do Exército americano que conta a história de uma oficial mulher criada por duas mães. “Talvez um Exército lacrador e emasculado não seja a melhor ideia”, opinou Cruz.

Na realidade, o Exército americano é sim meio lacrador, no sentido de que é altamente diverso e inclusivo, encoraja o pensamento independente e a iniciativa de jovens oficiais e, nos níveis superiores, é bastante intelectual.

O Exército russo, por outro lado, não é lacrador. Conscritos são submetidos a trotes brutais. De acordo com Mark Hertling, ex-comandante das forças americanas na Europa, o Exército russo é repleto de corrupção “em estilo mafioso” e seus oficiais são péssimos.

A questão mais ampla é que parecer durão não faz com que guerras modernas sejam vencidas. Coragem – que os ucranianos têm demonstrado – é essencial. Mas coragem não tem tanto a ver com fortalecer os bíceps. E a bravura deve caminhar de mãos dadas com inteligência e versatilidade, qualidades em falta no Exército russo.

MULHERES.

Eu já mencionei que mulheres compõem mais de um quinto das Forças Armadas ucranianas? A relevância desses fatores deveria ser óbvia. A guerra moderna é como a economia moderna (exceto pelo elemento adicional de terror absoluto). O sucesso depende mais de habilidade, conhecimento e receptividade para ideias do que de força bruta.

Mas o caráter trumpista é totalmente vinculado à exaltação do papo de durão e à difamação do conhecimento. A direita americana precisou ver Putin como um líder que se tornou poderoso em razão de sua rejeição aos valores progressistas. Admitir que a Rússia provou não ser uma grande potência colocaria em dúvida toda a filosofia trumpista.

O resultado é que a guerra, ainda que seja a luta pela liberdade da Ucrânia, tornou-se também um dos fronts das guerras culturais e políticas dos EUA. Existe uma crescente especulação a respeito do que acontecerá na Rússia se a invasão à Ucrânia terminar em derrota. Mas também temos de imaginar como a direita americana lidará com a revelação de que, certas vezes, caras durões terminam em último.