15 de março de 2021

TANGOS!

(Roberto Rodrigues, coordenador do centro de agronegócios da Fundação Getúlio Vargas – O Estado de S.Paulo, 14)

“Si arrastré por este mundo
La verguenza de haver sido
Y el dolor de ya no ser…”

Começa com essa triste estrofe o belíssimo tango Cuesta Abajo, dos célebres Carlos Gardel e Alfredo Le Pera, ambos responsáveis por algumas das mais famosas melodias do cancioneiro portenho. Le Pera foi letrista e Gardel, além de compositor, foi o maior intérprete de tangos de todos os tempos. Sobre a origem de ambos pesam muitas dúvidas.

Há, por exemplo, uma disputa acirrada quanto ao local e data de nascimento de Gardel. Uma versão é de que teria nascido em Toulouse-França, em dezembro de 1890. Outra afirma que a terra natal é Tacuarembó, no Uruguai, na mesma data. Quando provocado a respeito, ele mesmo dizia, esquivo, que tinha nascido em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade.

Já Alfredo Le Pera, que morreu junto com Gardel em acidente aéreo em Medellin-Colômbia em 1935, era paulistano do Bixiga, onde nasceu em 1900, filho de imigrantes italianos. Ainda muito menino, os pais se mudaram para o Uruguai e mais tarde para Buenos Aires.

Jornalista respeitado, escrevia sobre teatro e acabou se aproximando de círculos artísticos. Em 1934 mudou-se para Nova York para trabalhar com Gardel, que havia conhecido em filmagens em Buenos Aires, alguns anos antes. Juntos, criaram tangos clássicos espetaculares, como Cuesta Abajo, El dia que me queiras, Por una cabeza, Silêncio, Mi Buenos Aires querido, Golondrina, Soledad e outras maravilhas que iluminaram os sonhos de gerações de tangueiros apaixonados.

Há quem se engane quando pensa que esse ritmo, mistura de polca europeia, havaneira cubana, candombé uruguaio e de milonga espanhola só é apreciado por antigas gerações. Há movimentos contemporâneos que reavivam o tango, inclusive porque as letras são atuais. Por esse motivo, vale voltar à primeira estrofe de Cuesta Abajo – cuja livre tradução é “se arrastou por esse mundo a vergonha de ter sido e a dor de não ser mais”, e parece um profundo lamento de alguém que se envergonhava por não ter feito o que deveria quando tinha condições para isso e que agora sofria por não poder mais fazer.

Esse lamento deve ser ouvido pelas lideranças globais e nacionais. Todas as que hoje exercem cargos de destaque, não importa onde – na sociedade civil, nos Poderes constituídos, na academia –, precisam fazer o que deve ser feito enquanto podem, para não se arrependerem depois de sua omissão.

Há temas pendentes a este respeito em todas as frentes. O debate deve ser fomentado democraticamente para que decisões sejam tomadas.

A reforma política talvez seja a primeira barreira. Deve acabar a reeleição? Mandatos únicos coincidentes de 5 anos? Voto distrital misto? Redução do número de partidos e das cadeiras nos Legislativos?

A reforma do Estado, separando com clareza o que é governo e o que é Estado? Toda a agenda deve ser discutida porque é de interesse da nação. Não se trata de crítica ao funcionalismo público. Fui secretário de Agricultura em São Paulo e ministro no Brasil e conheci funcionários com grandes qualificações, competentes, dedicados, patriotas, ganhando muito menos do que mereciam e que seriam admirados e respeitados em qualquer empresa privada. O foco é outro: diminuir os gastos públicos.

Privatização é necessidade iminente na mesma direção? Então, tem de ser decidido o que privatizar em qualquer nível, e depressa.

A reforma tributária deve ser considerada em seguida e, felizmente, nosso Parlamento vai se ocupar dessa duríssima tarefa muito em breve.

Há uma questão crucial que efetivamente pode garantir o futuro do País: investimentos maciços em educação, ciência e tecnologia. Não haverá bem-estar social e muito menos riqueza em uma nação que despreze tais agendas. É hora de fazer o que deve ser feito por essas lideranças, para que os pósteros não lhes apontem o dedo acusador de assassinato do futuro.

Já devia ter sido feito no século 20, e não foi. Temos de fazer agora, e acabar com a corrupção ao custo que for, para não ouvirmos neste século 21 a trágica letra de Cambalache, de Discepolo:

“Siglo veinte, cambalache,
Problemático y febril…
El que no llora no mama
Y el que no afana es un gil.”