A DEGOLA NA BABEL DO SÉCULO XXI!
(Paulo Sternick – O Globo, 11) Deus —na metáfora bíblica —não podia imaginar que a estratégia de confundir as línguas não daria certo na atualidade. Criaram tradutores “on-line” e os humanos já poderiam chegar ao céu pelas torres da tecnologia. Verdade? Não. A Babel do século XXI se sofisticou — e ficou paradoxal. Pois hoje é possível se comunicar a qualquer momento, em diferentes línguas, e nas redes sociais. Porém, quanto mais o fazem, mais ficam confusos, atordoados e intolerantes: não chegaram ao céu, mas não estão longe do inferno. Deus é cruel? Não! Ele “ofereceu” excelentes pensadores para tirá-los dessa.
Marshall McLuhan batizou nosso mundo de “aldeia global”. O nome é instigante, e incoerente: aldeia é muito pequena, global é enorme, e com muita gente! A internet, enfim, as redes sociais nos jogaram de volta ao mundo tribal. Estamos todos muito próximos com nossas diferenças. Não percebemos o quanto isso nos pressiona e nos deixa agastados. Aos poucos, a privacidade foi sendo atacada, e fomos soterrados —em câmera lenta — pela enxurrada de contatos e informações. O mundo tribal não é amistoso. McLuhan avisou: um dos principais esportes de um povo da aldeia —em tempo integral —é degolar uns aos outros.
Se as distâncias foram rompidas, e o tempo quase acabou, muita intimidade aumentou a dose de intolerância e incivilidade. O próprio Freud apontara o “narcisismo das pequenas diferenças”. E na esteira de Schopenhauer, usou ainda a metáfora do porco-espinho: na carência, os seres se aproximam, porém, muito perto, se espetam. E o buraco e a falta que os humanos sentem —mais ainda nesta era de incertezas agudas —os levam à procura de uma sutura: as redes sociais, e todas as telas, se somam aos tóxicos que vendem o adiamento do sofrimento.
“Precisamos de contatos menos abrasivos, um pouco mais de distância entre o eixo e a roda. Quando estão juntos demais, perdem o espírito lúdico. Não se brinca mais” — comenta Marshall McLuhan. Ele, porém, não viveu a tempo de conhecer os efeitos da ascensão de Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Mal previu que no Brasil até humorista seria linchado em redes sociais. Porém, a evocação do lúdico é estratégica no atual cenário, onde a ternura não vem calibrando a dureza. O desmanche da polarização e do radicalismo, deixando de corresponder aos que se aproveitam do jogo, é das tarefas políticas mais importantes do momento.
O “New York Times” citou pesquisa científica: desde a Guerra Civil americana não se verifica tanta divisão e polarização nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, nem precisa sondar: há nível inusitado de radicalismo nas discussões. A política tem razões que a razão desconhece, mas também serve para expressão de ressentimento e intolerância oriundas de fontes subjetivas. Porém, a própria realidade carrega conflitos e contradições que opõem os sujeitos numa arena pronta para embates extremos. Até porque líderes escolhidos são afunilados em polos opostos da obtusidade ideológica. Na aldeia global, o meio que junta todos é a mensagem para se desentender. E ofuscar o assunto real.
Desse jeito, há inaudito ataque ao pensamento. A crise econômica não computa nos seus estragos a deterioração moral e psicológica da nação. A mente primitiva passa a pautar o tom e se infiltra até no debate entre economistas. Perturbações do pensamento econômico — oprimido entre a adesão a escolas ortodoxas e assombrações de um passado estereotipado —dificultam tomada de posições mais inteligentes e oportunas, que seriam aptas a ajudar a destravar o crescimento. A austeridade também ataca o pensar, e confirma ser a economia uma ciência realmente triste.
Por fim, ganha “likes” o discurso de que não há mais esperança de que o futuro possa trazer respostas aos impasses do presente. A mentalidade pessimista — ou será realista? — põe na agenda questão assustadora: há realmente progresso humano, além da ciência e da tecnologia? Enfim, melhor pensar que podemos encontrar a paz, se possível for esquecer a paz que no céu sempre buscamos.