12 de julho de 2022

QUEM FOI HARRIET MARTINEAU, A POUCO CONHECIDA FUNDADORA DA SOCIOLOGIA!

(Folha de SP, 09) No começo dos anos 1980, quando cursava ciências sociais na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Celso Castro foi apresentado aos autores considerados fundamentais para quem quisesse se aventurar naquela disciplina. Não é difícil imaginar que todos eram homens brancos nascidos nos Estados Unidos ou na Europa.

Castro conheceu pensadores como o alemão Karl Marx (1818-1883), o francês Émile Durkheim (1858-1917) e o alemão Max Weber (1864-1920), apontados como pais fundadores daquela que viria a ser sua área de pesquisa.

Essa trinca, no entanto, nunca foi unânime. O francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) não teria lugar entre os pioneiros, já que seu volumoso “Da Democracia na América”, cujas duas partes saíram em 1835 e 1840, é um clássico da ciência política?

E o que dizer do também francês Auguste Comte (1798-1857), que lançou mão da palavra sociologia ainda em 1839 para designar uma nova ciência? Segundo ensinou na 47ª lição de seu “Curso de Filosofia Positiva”, à sociologia caberia analisar as leis fundamentais específicas aos fenômenos sociais.

Quase meio século depois, Durkheim afirmou em seu curso de ciências sociais que Comte tinha apenas empregado a palavra e indicado o propósito da sociologia, sem, contudo, ter criado de fato uma nova área do conhecimento.

A crer nessa linha de argumentação, o marco inaugural da sociologia poderia ser a publicação de “As Regras do Método Sociológico”, de 1895, livro no qual Durkheim defende que os fatos sociais devem ser tratados como coisas.

Essa foi a história que Celso Castro aprendeu, assim como os demais estudantes que vieram antes ou depois dele, em um ciclo que se retroalimenta: professores ensinam esses autores, alunos os estudam e, quando se tornam professores, voltam a indicá-los para seus próprios alunos.

Como uma serpente que morde o próprio rabo, ninguém tinha a boca livre para perguntar: onde estão as mulheres, onde estão as pessoas não brancas e os pensadores não ocidentais?

Talvez venha à mente a hipótese de que o mundo do século 19 era ainda mais excludente que o de hoje, de modo que apenas homens brancos ocidentais teriam condições materiais de se dedicar a uma carreira acadêmica e produzir conteúdo digno de nota. Opressão gerando mais opressão.

Essa explicação funciona para boa parte dos casos, mas não para todos. Quem duvidar pode tirar a prova com o livro “Além do Cânone: para Ampliar e Diversificar as Ciências Sociais”. Na obra, ele apresenta 16 pensadores e pensadoras que fogem ao estereótipo dessa tradição ocidental, muitos dos quais o próprio Castro desconhecia.

“Não tenho vergonha alguma de reconhecer isso. Foram meses intensos de descoberta e de aprendizado que me fizeram ver, 40 anos depois de ter iniciado o meu curso de graduação, a enorme dimensão da minha ignorância em relação às possibilidades que as ciências sociais podem nos oferecer como instrumento de conhecimento da realidade social”, diz.

“Em décadas recentes, ampliou-se a ‘descoberta’ e inclusão de autoras, de não brancos e não ocidentais, mas principalmente em disciplinas mais especializadas, de pós-graduação etc. O que não se ampliou até hoje foi o cânone”, afirma Castro, que é professor da FGV, onde dirige o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) e a Escola de Relações Internacionais.

Sua proposta é justamente essa: ampliar o cânone, não substituí-lo. Há bons motivos para que os clássicos sejam considerados clássicos, mas não há boa justificativa para que mulheres e negros, por exemplo, fiquem sempre alocados em nichos, como feminista, decolonial ou do Sul. Por que não poderiam pertencer à “grande tradição”?

“Acho necessário e importante inserir essas autoras e autores que estão no livro não para manter um ‘equilíbrio’, uma ‘cota’, ou por razões de afirmação identitária em relação ao cânone tradicional, mas sim porque são muito bons e porque nos ajudam a entender melhor a realidade social”, afirma Castro.

Seu livro, mais uma vez, serve de prova. Após a apresentação de cada um dos 16 pensadores, Castro inclui trechos de seus textos, boa parte dos quais inéditos no Brasil. Assim, o leitor pode julgar por conta própria o pioneirismo, o impacto e a qualidade de intelectuais que bem poderiam pleitear um lugar entre os pioneiros das ciências sociais.

Castro não está sozinho. A socióloga Fernanda H. C. Alcântara, professora da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), considera o apagamento de Martineau uma injustiça histórica.

“Não existe um motivo para que Martineau não tenha o seu reconhecimento como fundadora da sociologia. Ela não foi apenas mais uma pessoa que participou do processo. Em 1838, ela já falava da necessidade de sistematizar os estudos da ciência da sociedade e escreveu um livro a esse respeito”, diz.

A fim de divulgar a obra de Martineau e garantir o ingresso dela na agenda das ciências sociais no Brasil, Alcântara se dispôs a traduzir por conta própria alguns livros da pioneira britânica.

Em 2021, saiu “Como Observar: Morais e Costumes”, disponível para compra no blog da autora. Em julho deste ano, terá à mão o primeiro volume de “Sociedade na América”, que ela pretende publicar em quatro partes, em vez das duas originais, mantendo intervalo de três a quatro meses entre cada uma delas.

Alcântara afirma que Martineau teve elevado reconhecimento no século 19, mas depois, sem que fique nítido por qual motivo específico, ela passou a ser negligenciada.

“O processo de construção do cânone foi um movimento sobretudo de exclusão e de suposta criação de uma identidade para a nova ciência, que já nem era tão nova assim. Vários autores e autoras foram apagados da história da sociologia nesse processo”, diz a socióloga. “Embora façamos sempre essa associação entre o cânone e a fundação da sociologia, existe entre esses dois elementos ao menos meio século de diferença.”

Dentro dessas escolhas políticas para formação do cânone, não há de ser coincidência que a britânica tenha ficado de fora. “Trata-se de uma visão muito diferente quanto aos elementos que constituem a sociedade, com destaque para o fato de que Martineau não excluiu da análise as mulheres e os escravos. Suas contribuições consideram a possibilidade de objetividade, sem negligenciar todas as possíveis formas de interferência no processo de produção do conhecimento”, afirma Alcântara.

Celso Castro celebra o empenho de Alcântara em passar o trabalho de Martineau para o português. “É importantíssimo que sejam feitas mais traduções, pois de outro modo o acesso a estudantes de graduação ficará muito limitado”, diz.

“Espero que o ‘Além do Cânone’ ajude a formar cientistas sociais em uma perspectiva mais ampla, diversa e colorida que aquela que presidiu minha formação. E, mais importante, que desperte nos seus leitores o mesmo sentimento que tive: paixão pelo mundo, vasto mundo, das ciências sociais”, afirma Castro.

O seu livro de fato permite uma degustação bastante saborosa de outros pensadores em geral não considerados entre os clássicos. São intelectuais do Haiti e do México, da Índia e do Japão, do Irã, da Turquia e da antiga Rodésia do Sul; são homens e mulheres, brancos e não brancos.

Compõem um quadro muito mais abrangente e diversificado das ciências sociais e da sociedade que aquele no qual só aparecem os mesmos de sempre.

Dada a qualidade dos trechos selecionados em “Além do Cânone”, resta esperar que mais pesquisadores se proponham a traduzi-los para o português, de forma que possam ser apreciados não como aperitivo, mas como prato principal.