08 de setembro de 2022

O QUE O CHILE TEM A ENSINAR!

(Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap – Folha de SP, 07) A fala do presidente do Chile, Gabriel Boric, conhecidos os resultados do plebiscito sobre a nova Constituição nacional, o alça ao diminuto rol dos estadistas democráticos que a América Latina conheceu ao longo de sua conturbada e não raro trágica história.

Rejeitado por robusta maioria, o texto era mais do que uma proposta para substituir aquele herdado da ditadura pinochetista (1973-1990) e emendado pelos governos livres que a sucederam. Em mais de três centenas de artigos, expressava a utopia de uma esquerda democrática e renovadora que Boric encarna.

De fato, a sua eleição e a chamada Convenção Constitucional resultaram ambas da imensa vaga de protestos de 2019-2020, que os chilenos chamam de “el estallido” (o estrondo) e que pareceu destroçar um sistema partidário conhecido por sua solidez e previsibilidade.

Sem exceção, as siglas que haviam vertebrado a disputa eleitoral desde o fim do cruento regime militar sofreram uma sangria de eleitores; o sistema se pulverizou em um emaranhado de legendas e movimentos. O ex-líder estudantil chegou ao Palacio de La Moneda aos 35 anos, embora só tivesse recebido 25,8% dos votos no primeiro turno e dependesse do apoio da centro-esquerda —cuja legitimidade ele contestava— para se eleger na segunda rodada. Na assembleia escolhida para redigir a nova Carta, com paridade de gênero garantida de antemão, os representantes dos movimentos sociais prevaleceram sobre os políticos profissionais.

O desfecho do plebiscito mostra que a parcela organizada e politicamente ativa da sociedade não se confunde com as preferências da maioria, tampouco a exprime, mesmo quando se enxerga como a sua tradução mais legítima e generosa.

Em face da ofuscante vontade de seus concidadãos, Boric a ela se curvou, saudando-a como expressão da força da democracia chilena, apelou ao diálogo e aos acordos para superar as “fraturas e dores” do país e se comprometeu a buscar com o Congresso e a sociedade o “itinerário constitucional” capaz de produzir uma versão que reflita o sentimento majoritário dos chilenos.

Ao fazê-lo, mostrou vigoroso compromisso com os valores e regras da democracia, que sempre se assenta no acatamento da voz das urnas e na busca de convergências possíveis.

Tudo o contrário do que se tem aqui: um presidente que não perde oportunidade para tratar adversários como inimigos, fomentar a cizânia na população —até no dia em que se comemoram os 200 anos da Independência— e fabricar suspeitas sobre as eleições que podem apeá-lo do poder e sobre as instituições que zelam pelo respeito às escolhas da cidadania.