A LÍNGUA OCULTA!
(Mario Vargas Llosa – O Estado de S. Paulo, 06) Qual foi a principal contribuição da Espanha para a América Latina, quando a descobriu e conquistou? A esta pergunta os crentes respondem a Igreja Católica, Cristo, a verdadeira religião. Os evangélicos, agora tão numerosos no novo continente, embora discordem um pouco, provavelmente acabariam aceitando essa resposta.
Os não crentes, como este que lhes escreve, responderíamos que, sem a menor dúvida, a principal contribuição foi a língua, castelhano ou espanhol, que tomou o lugar das mil e quinhentas (alguns linguistas falam em até quatro ou cinco mil) línguas, dialetos e vocabulários falados na América do Sul por tribos, povos e impérios. Como não se entendiam, viveram muitos séculos dedicados ao hobby de matar uns aos outros.
Muitos índios e um bom número de espanhóis morreram sob espada e pólvora naqueles séculos conturbados, nos quais a Espanha cobriu a América de igrejas, cidades, conventos, universidades e doutrinadores, nos quais milhares de famílias espanholas se estabeleceram nas novas terras, onde deixaram uma vasta descendência. Latino-americanos nos sentimos orgulhosos de sermos herdeiros desses humildes espanhóis, muitos deles analfabetos, vindos de todas as cidadezinhas da península.
O espanhol logo se popularizou em todos os lugares, unificando culturalmente o novo continente de um extremo a outro. Desde então esse idioma – sem que nenhum governo o impusesse, dada a apatia geral de todas as autoridades – tem tido a sorte, por seu dinamismo interno, pela clareza e simplicidade de suas formas e de sua conjugação, bem como por sua vocação de universalidade, de se expandir pelo mundo até ser falado hoje em dia nos cinco continentes, por cerca de seiscentos milhões de pessoas, tendo em um único país, os Estados Unidos da América, onde é a segunda língua mais falada, cerca de cinquenta milhões de falantes.
A língua não é apenas um meio de comunicação; é uma cultura, uma história, uma literatura e algumas crenças e experiências acumuladas, as quais foram permeando as palavras que a compõem e impregnando-as de ideias, imagens, costumes e, claro, conquistas científicas. A implantação do espanhol nos trouxe aos hispano-americanos Grécia e Roma, Cervantes, Shakespeare, Molière, Goethe e Dante, além das instituições que ao longo de sua trajetória criaram a Europa ocidental. Agora são tanto nossas quanto da Espanha. E já não era sem tempo.
O mais importante de tudo são as instituições que determinaram o progresso e a modernidade, bem como a filosofia que permitiu acabar com a escravidão, que definiu a igualdade entre raças e classes, os direitos humanos e, em nossos dias, a luta contra a discriminação contra as mulheres. Em outras palavras, democracia e o apetite de liberdade que a torna possível. Tudo isso e muito mais a América Latina adquiriu ao adotar a língua castelhana.
Sem ela, não se explicariam nem Inca Garcilaso de la Vega nem Sóror Juana Inés de la Cruz. Nem, é claro, Sarmiento, Rubén Darío, Borges, Alfonso Reyes, Octavio Paz, Cortázar, Neruda, César Vallejo, García Márquez e tantos outros grandes poetas e prosadores hispano-americanos que enriqueceram o espanhol.
No entanto, ao contrário do que seria natural, a alegria e o orgulho de um país cujo idioma foi assumindo com o correr dos séculos uma universalidade que só perde para a da língua inglesa – uma vez que o mandarim e o hindi são muito complicados e locais para serem verdadeiras línguas internacionais –, na própria Espanha, terra onde essa língua nasceu e evoluiu para então ganhar o mundo inteiro, como descobriram, entre outros, o grande Dom Ramón Menéndez Pidal e seus discípulos, os independentistas e extremistas têm feito campanha para rebaixá-la e diminuí-la, estreitando seu caminho e tentando (muito ingenuamente, claro) aboli-la ou substituí-la.
Acaba de acontecer mais uma vez, com a nova lei educacional que o atual governo do Partido Socialista e do Podemos aprovou com apenas um voto a mais que o necessário, com o apoio do Bildu, a continuação do ETA, organização terrorista que assassinou quase 900 pessoas e que agora abandonou a luta armada e aderiu à lei. Além, é claro, da Esquerda Republicana, cujos principais dirigentes foram condenados pelos tribunais espanhóis por convocarem um referendo sobre a independência da Catalunha, o que era explicitamente proibido pela Constituição de 1978, atualmente em vigor.
A negociação que possibilitou essa aliança, da qual alguns socialistas discordam, foi muito simples. O governo de Pedro Sánchez precisava aprovar seu projeto de orçamento nas Cortes. Para tanto, o Podemos atraiu os votos do Partido Nacionalista Basco (PNV), do Bildu e da Esquerda, que logo se apressaram em concedê-los, desde que o governo concordasse em modificar a lei, suprimindo o caráter “veicular” do espanhol, especificamente afirmado pela Constituição.
Esta é a razão pela qual o castelhano ou espanhol se tornou, segundo esta lei, uma língua oculta ou clandestina. Quem lê essa lei, chamada de “Lei Celaá” pelo ministro da Educação que a concebeu, surpreende-se que, em um projeto que estabelece as formas de educação em todo o país, o espanhol ou castelhano apareça só de passagem. O espanhol, a língua que nasceu em Castela, quando o país era semiocupado pelos árabes e que se tornou uma língua universal, onde está? É uma língua diminuída, silenciada, preterida pelas línguas locais, faladas pelas minorias.
E um dos ministros do governo teve a audácia de dizer que todo o escândalo que surgiu em torno desse tema teria sido evitado se o espanhol não houvesse “envenenado” o clima escolar da Catalunha, onde algumas escolas, que respeitam as leis, ofereciam as horas de aulas de espanhol que são obrigadas a dar, norma que a maioria das escolas catalãs desrespeita.
A lei estabelece que as aulas de espanhol ou castelhano constituem um direito de todas as pessoas nascidas na Espanha. Em quantas comunidades autônomas bilíngues esta disposição é cumprida? Receio que apenas em uma minoria. Pois, embora pareça impossível, a campanha contra o espanhol na terra onde Cervantes nasceu ainda segue sua marcha. Seria um verdadeiro suicídio se essa idiotice prosperasse, não para o espanhol ou para a língua castelhana, que têm seu futuro mais que garantido no resto do mundo, mas sim para a Espanha, a quem arrancar a língua seria arrancar a alma.
É simplesmente impensável que o país onde nasceram a língua castelhana, Quevedo e Góngora, bem como centenas de escritores que deram prestígio e dimensão universal ao espanhol, seja alvo de uma vitoriosa campanha de discriminação. Ela não pode e não deve prosperar.
Nós, falantes de espanhol, que formamos uma grande maioria no país, precisamos impedir essa tentativa absurda de subestimar e diminuir o espanhol frente às línguas periféricas. Assinemos os manifestos necessários e tomemos as ruas quantas vezes for preciso: o espanhol é a língua da Espanha e ninguém vai enterrá-la.