06 de março de 2020

O RIO EM TRANSE!

(Cláudio Frischtak – O Globo, 05) Cidades morrem. Podem não desaparecer, mas deixam de ser entes com dinamismo, com capacidade de atrair gente nova, gerar oportunidades. Saem os jovens, se vão os mais talentosos, criativos e empreendedores, e as empresas naturalmente os seguem. Perde-se assim a energia vital que faz das cidades espaços vibrantes de inovação, competição e cooperação, mas também de civilidade, acolhimento das diferenças.

Como as cidades morrem? Por vezes, o poder público —e a sociedade — não reagem a tempo a mudanças econômicas, a exemplo de Detroit. Há casos em que o eixo de poder se deslocou —tal qual Calcutá, quando não mais capital doRajbritâ nico. Masas forças maisd estrutivas para um acidade são derivadas da ausência de Estado, quando o crime organizado impõe suas regras, e — pior — se entranha e apoia-se no poder político. Foi a máfia — em suas diferentes versões —que levou à decadência de Nápoles, Palermo e outras cidades; não mais se recuperaram. Medellín é talvez a grande exceção: resgatada das narcomilícias pela sociedade com apoio do governo, renasceu.

Nossa cidade — o Rio — está aos poucos morrendo. Em anos recentes, sofreu um processo agudo, sem precedentes, de deterioração: da sua economia; da qualidade dos seus espaços públicos; da ordem nas ruas e praças, tomadas pela informalidade e ilegalidade; e do respeito com o cidadão pelas autoridades que encarnam o poder público — o prefeito; os legisladores; os órgãos de controle.

Talvez o mais grave: tal qual no sul da Itália e em Medellín, as milícias —em conflito com ou associadas aos narcotraficantes — exercem controle crescente em territórios onde se estima que more um terço da população do Rio. Há mais de 60 anos desfilava pela Avenida Atlântica num carro de luxo conversível e acompanhado de sua metralhadora um político folclórico, que acreditava que lugar de bandido era o cemitério. O ovo da serpente. Essa visão foi se transmutando ao longo dos anos, e quando as milícias fincaram pé, muitos acreditavam que eram um “mal menor”. Outros — políticos hoje proeminentes — as enalteciam. Agora desafiam o poder público, e o fazem muitas vezes com certeza da impunidade. Expande-se a milícia, o contrabando de armas, o narcotráfico, e o espaço do cidadão e da legalidade se encolhe. Aos poucos, o Rio como centro de civilidade perde o viço; as enormes economias que a cidade propicia, exatamente por compartilharmos ideias e recursos num mesmo espaço, se esvaem.

Temos que dar um basta neste processo, antes que se torne irreversível. Medellín chegou próximo ao ponto de não retorno; reagiu. E nós? Está nas mãos da sociedade elegermos uma administração comprometida com a recuperação da cidade, juntando os melhores talentos para resgatar o Rio da incompetência, da má-fé, dos fundamentalismos e visões tacanhas, da violência e bandidagem. Antes que seja tarde.

Necessitamos de uma nova política para o Rio. Primeiro, um compromisso inarredável com o bem-estar de todos os cidadãos, e não apenas aqueles da base eleitoral, as “igrejas”, os amigos. O Estado é impessoal; e laico. Segundo, é essencial lidar com absoluta integridade com a coisa pública. A corrupção deve ser extirpada em qualquer instância, com uso de novas tecnologias que deem transparência aos atos do governo. Terceiro, o administrador público é o responsável pelo dinheiro do contribuinte; deve —a todos os momentos —fazer o uso desses recursos que trazem maiores retornos para a sociedade. Quarto, todos os serviços públicos do município devem ser bem geridos, para assegurar uma cidade que funcione para pessoas e empresas.

Finalmente, deve-se cobrar dedicação absoluta à recuperação dos espaços públicos, das áreas de convivência em todos os bairros e regiões da cidade. O abandono do espaço público estimula a informalidade e própria ilegalidade. Destrói o comércio, e é o sintoma mais aparente da decadência do Rio.