HÁ UM SÉCULO, TENENTISMO DAVA INÍCIO À DERROCADA DA 1ª. REPÚBLICA!
(O Estado de S. Paulo, 04) O tenente Antônio de Siqueira Campos, de 24 anos, um dos responsáveis por preparar o Forte de Copacabana para o combate que se avizinhava, esperou um pouco depois que o canhão de 190 mm disparou contra a Ilha de Cotunduba, perto da entrada da Baía de Guanabara. Era 1h20 do dia 5 de julho de 1922, um ano tenso, marcado por uma sucessão de boatos entre os fardados de que “a ‘procissão’ (revolução) ia sair”. O estrondo na escuridão era um anúncio que ecoou pela cidade.
Na sala de bilhar do Palácio do Catete, prédio de estilo neoclássico encimado por sete harpias de bronze, o presidente Epitácio Pessoa, prevenido por agentes que vigiavam os conspiradores, tirou o relógio do bolso. Olhou e comentou: “Estão 20 minutos atrasados”. Começava a rebelião que um dia e meio depois seria debelada à baioneta, na praia abaixo da fortificação.
A reportagem do Estadão consultou os arquivos do Exército, documentos e jornais da época para reconstruir a revolta que inaugurou o tenentismo e abriu caminho para pôr abaixo a Primeira República. Naquela noite, o forte começou a atirar, mas a procissão não saiu. Ele atingiu de novo a ilha, e acertou a base do Forte do Vigia, no Leme, e o 3.º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. Mas não houve salvas de outras guarnições avisando que também se revoltavam. A conspiração dos militares (e alguns civis) fora – ou estava sendo – desmontada pelo governo, com base na ação de “secretas” e infiltrados. O Catete se antecipara aos rebeldes, ocupava quartéis, prendia suspeitos.
Um levante articulado na Vila Militar, no 1.º Regimento de Infantaria, foi sufocado após tiroteio que resultou na morte do capitão Barbosa Monteiro. Os cadetes da Escola Militar de Realengo, rebelados, também fracassaram. Parecia que tudo dava errado para os rebeldes.
O levante no 1.º Batalhão de Engenharia foi sufocado, assim como na Escola de Sargentos. A Fortaleza de Santa Cruz, em vez de aderir, dispararia contra o Forte de Copacabana. Até o acaso parecia estar com Epitácio. A 1.ª Companhia Ferroviária, em Deodoro, não se movimentou. Seu comandante, o tenente Luiz Carlos Prestes, estava com tifo. Anos depois, confessou a frustração por não poder sublevar. Enfraquecido, não conseguiu ficar de pé e se fardar.
Poderoso
Com os fracassos e as desistências, restou só na capital, tentando derrubar a velha ordem, o Forte de Copacabana. Era unidade poderosa. Construído sobre um rochedo que avança pelo mar e inaugurado em 1914, ele tinha cúpulas giratórias e canhões 75, 190 e 305 mm, importados da alemã Krupp. Como rodavam, as armas podiam atingir alvos em terra e mar, em um raio de 20 quilômetros.
Naquela manhã, o forte tinha 300 homens rebelados. No comando estava o capitão Euclydes Hermes da Fonseca. Os revolucionários ergueram barricada no portão do quartel, eletrificaram redes de arame farpado, minaram o corpo da guarda. O governo isolou o bairro, um balneário de casas distante do centro. O Exército instalou baterias em morros próximos e deslocou tropas para o Túnel Novo e a Praça Serzedelo Correia. Montou uma Força de Ataque e mandou dois ultimatos aos revolucionários.
Ao longo do dia 5, os revolucionários acertaram alvos no centro e na zona sul com projéteis lançados por cima dos morros. Um dos pontos atingidos foi o Quartel General do Exército, onde morreram um sargento e dois soldados. Foram vítimas de um tiro corrigido, ironicamente, com a ajuda involuntária de Pandiá Calógeras, o ministro da Guerra. Ele telefonou para o Forte. Queria reclamar que uma casa na Rua Barão de São Félix tinha sido atingida por um petardo dos revolucionários. Em consequência, três pessoas – inclusive uma criança de dois anos – morreram sob os escombros.
O Forte corrigiu a mira e disparou de novo, atingindo a ala esquerda do QG. Acertou mais duas vezes, uma do lado oposto do prédio, outra no pátio. Depois, visou a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Túnel Novo. E acertou um tiro no navio São Paulo, da Marinha, que disparara contra os revoltosos.
Mas os revoltosos também eram bombardeados. Até por aviões. Os problemas do movimento iam além do cerco. O canhão de 305 mm fora sabotado. O governo cortara água e energia do quartel. Antes das 7h do dia 6, diante da perspectiva do ataque do governo, Euclydes liberou os subordinados que quisessem deixar o Forte. Mais de 250 homens aceitaram. Em roupas civis, pularam a barricada e se dispersaram.
Marcha
Ficaram no Forte 28 homens. Decidiu-se que o capitão Euclydes iria conversar com Calógeras, para negociar uma rendição “com honra”. Levaria uma pauta escrita por Siqueira Campos: garantia de vida para os revolucionários; baixa do Exército; passagens para a Europa. O capitão passou o comando a Siqueira Campos. Em seguida, saiu do quartel e pegou um táxi.
Foi preso. Siqueira reuniu os comandados. Decidiram abandonar o Forte para enfrentar os governistas. Houve então um ritual. Com uma navalha de barbear, o comandante cortou uma bandeira do Brasil em 28 pedaços. Distribuiu a maioria deles entre os presentes. Ficou com três: um para si, um para Euclydes e um para Newton Prado, que montava guarda na barricada. Alguns revoltosos usaram os fragmentos para escrever. Eram bilhetes póstumos: despediam-se de parentes e amigos.
Após 13h30, começaram a marcha pela Avenida Atlântica. A eles incorporou-se um civil, Octavio Correia, que ganhou um fuzil e um pedaço da bandeira – o reservado a Euclydes. Depois de uma parada no Hotel Inglez, onde beberam água, o grupo seguiu em frente, segundo depoimento de Siqueira Campos. O tenente disse que “oficiais e praças do 3.º Regimento” gritavam de longe que se rendessem, ao que os revoltosos respondiam que atirassem.
Outros depoimentos, de militares, relatam o encontro, na altura da Rua Barroso – atual Siqueira Campos – do grupo de rebeldes com os legalistas. Ali, o tenente governista Segadas Viana estava com um pelotão. O comandante do 2.º Batalhão do 3.ª Regimento de Infantaria, major Pedro Chrysol Fernandes Brasil se aproximou, mas os revolucionários diziam que iriam ao Catete, ameaçando-o. “Vocês estão cometendo um ato de loucura”, disse o oficial ao depor. Brasil afirmou ter insistido, mais de uma vez, para que os rebeldes se rendessem, garantindo suas vidas. Não foi obedecido, e a tensão crescia. O oficial legalista, então, deu a Segadas ordem de fogo.
Foi quando, segundo sua versão, os revolucionários se dividiram em dois grupos e atiraram. Primeiro de pé. Depois pularam para a praia. Siqueira viu os companheiros caírem feridos: Eduardo Gomes, Octávio Correia e Prado. Em seguida, foi a sua vez.
Começou então o ataque final com baionetas autorizado pelo general Tertuliano Potiguara e comandado por Brasil. Ferido, Siqueira contou no processo ter visto que Prado, deitado e ferido, atirava de revólver. “Levantem os que estão vivos!”, gritavam os legalistas. A revolução acabara. Siqueira e Gomes sobreviveram. Prado morreu seis dias depois. Correia, ferido no peito, não sobreviveu. Ao menos três praças morreram.
O mesmo aconteceu com o tenente Mário Carpenter. Com ele foi achado seu fragmento da bandeira. Trazia a mensagem que escrevera pouco antes. Ela está guardado em caixa envidraçada, no Forte de Copacabana – hoje um centro cultural ligado ao Exército. Diz, em letras desbotadas: “Forte de Copacabana – 7 de julho de 1922. Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia… minha vida”.
Governo bombardeou São Paulo em 1924 e proibiu o ‘Estadão’
Em 5 de julho de 1924, São Paulo foi o palco de nova rebelião dos tenentes. O governo do Estado deixou a cidade, e os rebeldes ofereceram a direção civil do movimento a empresários, entre eles Julio Mesquita, que declinou. Com o passar dos dias, as dificuldades na cidade – bombardeada pelas tropas federais – aumentaram.
O presidente da Associação Comercial, Macedo Soares, propôs a criação de uma Guarda Municipal e uma Comissão de Abastecimento Público, formada pelo arcebispo d. Duarte Leopoldo, pelo prefeito Firmiano Pinto, por Mesquita e outros. A revolta durou 22 dias e deixou 503 mortos e 4,8 mil feridos. Ao retomar a cidade, o governo prendeu e processou civis acusados de simpatizar com o movimento, entre eles Mesquita e o jornalista Paulo Duarte, redator do Estadão, e proibiu o jornal de circular.