05 de dezembro de 2022

PRECISAMOS FALAR SOBRE A FORÇA DA DEMOCRACIA!

(Fareed Zakaria – Washington Post/O Estado de SP, 04) Ao longo dos meses recentes, temos nos preocupado muito com a fragilidade da democracia. Dos EUA ao Brasil, da Suécia à Itália, o sistema pareceu enfrentar desafios reais. Na realidade, em todos esses casos, eleições surtiram o efeito de domar muitas das forças mais iliberais e, pelo menos por agora, o centro está mantido. Enquanto isso, testemunhamos sinais de fraquezas profundas e estruturais em algumas das autocracias mais poderosas do mundo. O exemplo mais marcante é a China, onde uma extraordinária onda de protestos confronta os poderes existentes. No cerne do problema está a falta de vontade do governo de mudar o curso em relação à sua política anticovid. Trata-se de um problema inerente às ditaduras, onde a tomada de decisão é feita a portas fechadas, de maneira hierárquica e incapaz de ser responsabilizada. Ao contrário dos autocratas, os líderes democráticos são submetidos a pressões persistentes para mudanças de política. Os líderes sabem que passarão por eleições, então, se as coisas não estão funcionando, as políticas têm de mudar – ou então eles serão substituídos.

CHINA.

Esses problemas se agravaram em sociedades modernas. Considerem a diferença entre a China da época dos protestos liderados por estudantes na Praça Tiananmen, em 1989, e a China de hoje. No fim dos anos 80, o número de chineses urbanos com grau universitário estava na casa de poucos milhões. Hoje, mais de 200 milhões de chineses têm nível universitário. Até o lendário “great firewall” (expressão que alude à Grande Muralha da China) – com seu exército de 2 milhões de censores – tem dificuldades para dar conta da torrente de imagens e mensagens criadas nas redes sociais chinesas. Nos anos recentes, tendemos a colocar o foco nos muitos problemas causados pelas redes sociais, mas esquecemos que o efeito fundamental delas é empoderar indivíduos. Na Rússia, vemos como um processo de tomada de decisão similarmente fechado e indiferente pode levar ao desastre. Como resultado da guerra do presidente Vladimir Putin, seu país está cada vez mais isolado e empobrecido. Putin mobilizou 300 mil reservistas, muitos deles relutantes sobre combater na Ucrânia. Ao mesmo tempo, centenas de milhares de russos fugiram de seu país. No Irã, vemos uma autocracia teocrática determinada a manter seu controle ideológico sobre o país. As elites governantes do Irã acreditam que sua versão fundamentalista do Islã deve ser imposta – ou terão o mesmo destino dos comissários soviéticos. Em contraste, democracias liberais não tentam impor ideologias que lhes agradem sobre seus povos. Em seu cerne está a convicção profunda e permanente de que os seres humanos devem ter liberdade de escolher suas formas pessoais de felicidade – e o respeito ao fato de que pessoas diferentes terão definições diferentes sobre uma vida boa.

TRANSFORMAÇÃO.

Autocracias podem parecer impressionantes por certo tempo porque são capazes de ser constantes, consistentes e implacáveis na busca de objetivos. Mas enfrentam um desafio fundamental: têm dificuldade para se ajustar a uma sociedade em transformação (a China foi exceção por algum tempo, criando uma forma incomum de ditadura com base em consenso, tecnocrática e responsiva. Mas, sob Xi Jinping, o regime reverteu para algo mais parecido com a norma autocrática). Portanto, o reflexo do autocrata à mudança é repressão, que funciona apenas durante um determinado período. É estarrecedor recordar que, quando os pais fundadores dos EUA construíam seu experimento de governo, estavam virtualmente sozinhos em um mundo de monarquias. Esses políticos se inspiraram nos escritos dos filósofos do Iluminismo, como Montesquieu e John Locke, estudando exemplos históricos da Grécia antiga e Roma – e incorporando elementos vitais da governança inglesa e do direito comum. Eles tiveram alguns fracassos. Mas, no fim, chegaram a um arranjo surpreendente: um sistema que protege direitos individuais, permite mudanças regulares na liderança, evita hegemonias religiosas e cria uma estrutura flexível o suficiente para se adaptar a grandes transformações. A democracia é frágil de sua própria maneira, mas este é um bom momento para considerar suas forças. Essa ideia abstrata de governo, criada em grande medida pelos EUA e seguida ao longo dos anos por incontáveis nações, espalhou-se para países ricos e pobres, europeus, asiáticos, latino-americanos e africanos. E é submetida ao crivo do tempo há dois séculos e meio. Alguém acha que os regimes de Rússia, China ou Irã durarão tanto quanto? Winston Churchill foi certamente justificado em sua convicção de que a democracia é a pior forma de governo – exceto por todas as demais.