04 de agosto de 2021

O MUNDO ESTÁ NOS LEMBRANDO QUE A DEMOCRACIA É DIFÍCIL!

(Fareed Zakaria – O Estado de S. Paulo, 02) A notícia desta semana de que a democracia está em perigo na Tunísia – o único caso de sucesso da Primavera Árabe – chega apenas três semanas depois de sabermos que o presidente do Haiti foi assassinado. Enquanto isso, no Afeganistão, o governo parece incapaz de estabelecer autoridade em todo o país. Isso me fez refletir a respeito de uma das questões fundamentais da política: por que é tão difícil construir e manter a democracia liberal?

O melhor trabalho recente sobre o tema vem de uma notável dupla de estudiosos, Daron Acemoglu e James A. Robinson. Em seu último livro, The Narrow Corridor (O estreito corredor, em tradução livre), eles responderam a essa pergunta com grande perspicácia. Em todas as sociedades, eles observam, o primeiro passo é simplesmente alcançar algum grau de ordem e estabilidade. A história está cheia de lugares onde gangues, senhores da guerra e tribos governam, e o Estado nunca é capaz de consolidar o poder e governar de verdade. Esse foi o passado do Afeganistão e pode ser o seu futuro.

Se a ordem política é rara, a ordem política liberal é ainda mais rara. A democracia liberal é a forma perfeita de governo. Precisa de um Estado que seja forte o suficiente para governar de verdade, mas não tão forte a ponto de destruir as liberdades e os direitos de seu povo. Os autores chamam isso de “o Leviatã acorrentado”. (Thomas Hobbes usou o monstro bíblico Leviatã para descrever um Estado poderoso. Chegar à democracia liberal exige que as sociedades atravessem um estreito corredor, que permita ao Estado estabelecer poder enquanto permite o desenvolvimento de uma sociedade civil que se afirma e luta por direitos. Juntos, eles criam o delicado equilíbrio entre estabilidade e liberdade. Os países do Ocidente tiveram sucesso porque conseguiram construir tanto Estados como sociedades fortes.

No Afeganistão, apesar de duas décadas de esforços, o Estado tem falhado em conquistar o controle de grande parte do país, criando o que os autores chamam de “Leviatã ausente”. No Egito, o Estado é muito forte. Mas após um breve flerte com a democracia depois da Primavera Árabe, o país retrocedeu para a ditadura. Outras partes do mundo têm “Leviatãs de papel” – governos que exercem o poder principalmente para enriquecer uma pequena elite no topo. Pense na Nigéria ou na Venezuela.

Como o Ocidente alcançou a política perfeita? Os autores citam duas forças opostas. Primeiro, houve o legado do Império Romano, que ofereceu instituições, leis e tradições que tornaram possível criar a ordem. Em segundo lugar, as tribos do norte da Europa, enraizadas em assembleias igualitárias, tinham uma tradição de desafiar líderes poderosos. A competição entre nobres e reis – e mais tarde, eu acrescentaria, entre Igreja e Estado, e entre as centenas de estados, ducados e principados da Europa medieval – tudo isso, ajudou a liberdade individual a crescer e florescer.

Não é uma questão de superioridade cultural do Ocidente, mas, sim, de sua história incomum. Países em outras partes do mundo têm conseguido atingir um equilíbrio semelhante – Índia, Coréia do Sul, Costa Rica. Mas o corredor é estreito e entender isso nos ajuda a reconhecer a fragilidade da democracia liberal.

Fraquezas. É por isso que, no final da década de 1990, enquanto estávamos aplaudindo os países em todo o mundo que realizavam eleições, identifiquei o fenômeno da “democracia iliberal”, lugares onde líderes eleitos estavam sistematicamente abusando do poder, privando as pessoas de seus direitos e esvaziando a essência do governo liberal e constitucional. Desde então, infelizmente, essa lista tem ficado muito mais longa, incluindo países ocidentais como a Hungria, democracias estabelecidas como a Índia e alguns, como a Rússia, que simplesmente se transformaram em ditaduras.

Os países, incluindo os Estados Unidos, que atravessaram o estreito corredor e atingiram o equilíbrio certo entre Estado e sociedade são felizardos. Mas estamos em uma era de funcionamento fora do padrão das democracias, já que os movimentos populistas ameaçam as instituições e as normas políticas que há muito tempo são vistas como neutras. Vemos isso de forma mais perigosa na tentativa do Partido Republicano de politizar a contagem de votos nos estados que controla.

Os EUA continuam sendo uma democracia liberal, mas a audiência desta semana a respeito da insurreição do dia 6 de janeiro no Capitólio destacou a fragilidade das normas democráticas até mesmo aqui. Nossas instituições políticas são mais fortes que a maioria, mas estão sendo exauridas por uma sociedade que está profundamente dividida – tanto que mesmo os fatos básicos do que aconteceu em 6 de janeiro são vigorosamente contestados.

Os desordeiros, encorajados por políticos inescrupulosos, mostraram o dano que um grupo de cidadãos comuns poderia causar. Podemos reparar esse dano pressionando por proteções democráticas mais fortes e resistindo a esforços para subverter a vontade do povo.

Você provavelmente já deve ter ouvido a história de que, em 1787, alguém supostamente perguntou a Benjamin Franklin que tipo de governo a Convenção da Filadélfia havia decidido. “Uma república”, respondeu ele, “se você puder mantêla.” Os delegados poderiam ter projetado o melhor sistema do mundo, mas seu sucesso, em última análise, coube ao povo.

Isso parece um alerta ameaçador, mas também pode nos consolar – o poder de preservar a democracia está em nossas mãos.