O MÉDICO AO LONGO DA HISTÓRIA!
(Silvano Raia, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP – O Estado de S. Paulo, 26) Nunca sua atuação foi tão necessária como balizador ético dos progressos e inovações
Recentes progressos justificam comentar a evolução do médico ao longo da História. Sucessivamente, exerceu sua profissão de várias formas e com diferentes tipos de avaliação da sociedade a que pertencia.
Pela leitura de papiros aprendemos que a partir de 6000 a.C. até o início da Idade Média o médico ocupou uma posição de destaque. Não dispondo de conhecimentos sobre as doenças nem meios para diagnóstico, sua atuação se limitava a exercer uma influência benéfica para que os pacientes aceitassem seu sofrimento como expressão de um desígnio superior, impossível de ser modificado.
Suas características humanas constituíam a base da relação com o paciente e a aura de ser um superior era responsável pelos eventuais resultados que conseguia. Esse tipo de atuação, em parte mágica e em parte ilusionista, chegou até a Grécia de Hipócrates, que valorizou a anamnese e o exame físico, conferindo à prática médica uma primeira conotação objetiva.
A posição de elite na sociedade se deteriorou na Idade Média e na Renascença, quando a atuação do médico se limitava a sangrias e laxativos. Barbeiro era o nome pelo qual era depreciativamente conhecido.
Do século 16 ao início do 19, a imagem do médico voltou a se dignificar, ao mesmo tempo que a medicina passava de arte a ciência humana. Ele tentava entender as doenças e tratá-las com os escassos recursos de que dispunha.
Pouco mais tarde, na transição do século 19 para o século 20, com o advento do raio X e dos primeiros exames de laboratório, a imagem do médico se enobreceu ainda mais, na medida em que era obrigado a ter acesso aos conhecimentos da época, que já não eram poucos, para melhor atender seus pacientes. Provavelmente foi a época áurea da dignificação da profissão médica.
Ao contrário, de meados do século 20 até o presente, a evolução dos meios de comunicação e a consequente facilidade de acesso aos servidores web, ricos em informações médicas, concomitante a uma série de progressos e inovações, determinaram que a imagem do médico se apequenasse progressivamente. Isso porque os novos métodos terapêuticos tendem a reduzir a importância do componente humano da relação médico-paciente.
Para isso concorreram também o advento da medicina à distância e a biotecnologia, com suas possibilidades inéditas e surpreendentes, como a engenharia genética, o diagnóstico por inteligência artificial (algoritmos), os chips para dosagem em tempo real de substâncias presentes na circulação sanguínea ou para infusão contínua de hormônios na quantidade necessária para manter a sua concentração fisiológica.
Entretanto, nunca foi tão necessária a atuação do médico, como balizador ético desses progressos. Por exemplo, uma técnica recentemente descrita, denominada CRISPR-Cas9, permite modificar, com facilidade, o genoma de qualquer ser vivo, inclusive o nosso. Essas modificações determinam mutações voluntárias que acarretam um risco de grandes proporções. Serão inevitáveis tentativas de criar humanos mais perfeitos do ponto de vista intelectual, físico e estético, ou seja, um projeto de eugenia. Diferentemente do que ocorreu na Alemanha na década de 1930, quando se tentou criar uma raça superior pela eliminação dos menos dotados física e intelectualmente, agora agiríamos criando super-humanos.
Para evitar esse risco o médico deve distinguir claramente os métodos de engenharia genética que curam doenças, devolvendo ao genoma sua configuração normal, daqueles que o modificam transmitindo a nova configuração às gerações seguintes.
Uma visão abrangente da evolução dos objetivos dos médicos mostra que, no início, eles se limitavam a confortar os pacientes, a seguir, e sucessivamente, a diagnosticar as doenças e tratá-las e depois, pela biotecnologia, a evitar sua transmissão por hereditariedade. Agora tenta curá-las, e não apenas tratá-las. Por fim, pretende, no futuro, evitá-las de uma vez por meio de vacinas de DNA, buscando com isso prolongar a vida e evitar a morte.
Saliente-se que esses novos objetivos exigem do médico uma atuação muito mais importante do que a de simples executor de técnicas complexas, computadorizadas ou não.
Ele deve identificar e incentivar as que efetivamente beneficiem seus pacientes e a nossa espécie como um todo. De fato, sua atenção não se deve limitar às necessidades de um único paciente, mas considerar que, se forem generalizadas, as novas técnicas podem exercer efeitos sobre toda a espécie humana.
Nesse sentido, como diz o professor brasileiro de Bioética Leo Pessini, hoje atuando no Vaticano, “devemos aprender a aceitar a ousadia científica ao mesmo tempo que estimulamos um diálogo inteligente entre ética e ciência, ou seja, devemos estimular uma interação eticamente criativa e respeitosa desses dois universos”.
Sem essa visão humanística o médico pode se transformar apenas num executor de tarefas programadas, ou seja, um tecnocrata, e o paciente num cobrador de soluções.
Prova marcante desse risco desalentador é saber que, ao julgarem casos de relação médico-paciente discutível, vários juízes têm se baseado no Código de Defesa do Consumidor!
Ao contrário, se aceitarem essa nova incumbência, os médicos voltarão a desfrutar a aura que merecem e, mais do que tudo, garantirão um futuro melhor, feliz e seguro para os nossos descendentes.
Finalizando, vale citar a frase do presidente Bill Clinton, quando da conclusão da leitura do genoma humano: “Hoje estamos aprendendo a decifrar a linguagem que Deus usou para escrever o livro da vida”.
É nossa responsabilidade fazer com que a linguagem de Deus seja empregada com a mesma finalidade com que Ele a usou, ou seja, para o bem e a dignidade do ser humano.