02 de janeiro de 2018

“NOVO INDIVIDUALISMO É MOVIDO POR UMA FOME INSACIÁVEL DE MUDANÇAS IMEDIATAS”! 

(ANTHONY ELLIOTT é professor de sociologia da Universidade South Australia e da Universidade Keio, no Japão. É autor do livro “The New Individualism” –Ilustríssima – Folha de S. Paulo, 31/12/2017)

1. Meu argumento geral é o de que a reinvenção e as ideologias a ela relacionadas podem ser compreendidas mais corretamente como consequências da difusão daquilo que já defini como novo individualismo. O individualismo girava em torno da construção de uma identidade privada e estável para nós mesmos, independente do mundo. Mas o individualismo de hoje nos encoraja a mudar tão completa e tão rapidamente que nossas identidades se tornam descartáveis. O termo “individualismo” foi cunhado no começo do século 19 pelo francês Alexis de Tocqueville para descrever o senso emergente de isolamento social que ele observou nos Estados Unidos. Hoje, essa noção continua em vigor, mas com um comportamento devidamente modificado e ajustado para se enquadrar ao novo capitalismo e às tecnologias criadas pela globalização —e é por isso que falo de um novo individualismo.

2. O novo individualismo é movido por uma fome insaciável de mudanças imediatas. A tendência pode ser percebida nas sociedades contemporâneas não só pela ascensão de cirurgias plásticas e pelos reality shows sobre reforma instantânea de identidade mas também pelo consumismo compulsivo, pelos namoros relâmpagos e pela cultura da terapia. O desejo por resultados imediatos nunca foi tão pervasivo ou agudo. Ficamos acostumados a gastar meros segundos para mandar e-mails ao outro lado do mundo, comprar produtos supérfluos com um clique e deslizar de uma relação para outra sem maiores compromissos de longo prazo. Não surpreende que agora tenhamos diferentes expectativas sobre as possibilidades da vida e o potencial para mudanças.

3. Em nossa sociedade imediatista, as pessoas querem mudanças e, cada vez mais, as querem para já. O mercado agora oferece uma série de soluções com a promessa da transformação instantânea. Mais e mais, tais soluções —da autoajuda à terapia, da reformas pessoais a cirurgias plásticas— são reduzidas a uma mentalidade mercantil.  O consumo “para já” de hoje em dia cria a fantasia da plasticidade infinita do “eu”. A mensagem da indústria é a de que você poderá se reinventar como bem entender —e nada poderá impedi-lo. Mas esse novo senso de individualismo dificilmente preservará sua felicidade por muito tempo. Pois melhorias pessoais são concebidas tendo em vista o curto prazo. Elas duram apenas até “a próxima vez”. Em um relatório que ressalta o entrelaçamento entre o individualismo e o imediatismo, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas aponta para a enorme demanda em todo o mundo por serviços e bens de consumo individuais. “Demanda”, nesse caso, significa desejo por gratificação instantânea, um desejo que não só estimula o senso de isolamento social percebido por Tocqueville mas também pode acarretar consequências mundiais desastrosas.

4. Argumento que a ascensão de uma linguagem comum altamente individualizada para definir questões públicas é um fenômeno ambíguo, que promove a compreensão da realização do “eu” e também o cultivo da limitação do “eu”. A cultura do individualismo gerou um mundo de experimentação, expressão pessoal e tomada de riscos —que, por sua vez, é embasado por novas formas de apreensão, angústia e ansiedade derivadas dos perigos da globalização. Se o novo individualismo se tornou supremo, é porque flexibilidade, adaptabilidade e transformação estão mescladas de modo complexo na economia eletrônica mundial. Num mundo de demissões intermináveis pelas grandes empresas, transferências de operações para o exterior e reorganizações de companhias, as pessoas estão correndo para se ajustar a novas definições e experiências do “eu” quanto a relacionamentos, intimidade e trabalho, entre muitas outras áreas. Diante do pano de fundo desse admirável mundo novo da globalização, da revolução nas comunicações e da tecnologia de produção baseada em computadores, não deveria ser surpresa que homens e mulheres contemporâneos expressem o desejo de transformar suas vidas instantaneamente, de modificar seu “eu” sem restrições ou resistência.

5. Como os participantes do reality show “Extreme Makeover” —no qual as pessoas passam por cirurgias cosméticas, trabalho ortodôntico, regimes de exercício e reformulações de guarda-roupa a fim de reconstruir suas existências—, mais e mais homens e mulheres acreditam que é possível e necessário recriar suas vidas da forma que preferirem. Nessa condição narcisista, o “eu” é redefinido como uma espécie de kit “faça você mesmo”. A realidade se deflaciona magicamente, já que deixam de existir restrições impostas pela sociedade, ao mesmo tempo em que o “eu” se eleva ao patamar de uma obra de arte. Diversos fatores, em condições de globalização avançada, levam os indivíduos a exigir mudança instantânea a fim de obter aquilo que percebem como vantagem pessoal e profissional sobre os outros.

6. A nova economia causou mudanças de enorme magnitude, que sujeitam as pessoas a pressão intensa para que acompanhem a velocidade das transformações sociais. Empregos seguros desaparecem do dia para a noite. Homens e mulheres lutam freneticamente para conquistar novas capacitações, ou serão descartados. Nessa nova economia de contratos de curto prazo, interminável redução de custos, entregas a jato e carreiras múltiplas, as transformações sociais objetivas são espelhadas no nível da vida cotidiana. A demanda por mudança instantânea, em outras palavras, é amplamente percebida como demonstração de apetite por (e disposição de abraçar) mudança, flexibilidade e adaptabilidade. O impacto das grandes empresas multinacionais, capazes de exportar a produção industrial para locais de baixos salários em todo o mundo e de reestruturar o investimento no Ocidente, desviando-o da manufatura para os setores de finanças, serviços e telecomunicações, causou grandes transformações na maneira como as pessoas vivem suas vidas, abordam o emprego e se posicionam dentro do mercado de trabalho.

7. O emprego se tornou muito mais complexo do que em períodos anteriores, como resultado da aceleração da globalização, e um fator institucional chave para a redefinição da condição contemporânea foi o declínio da ideia de posto de trabalho vitalício.  A morte da ideia de uma de uma carreira (uma vida de trabalho) desenvolvida dentro de uma só organização foi interpretada por alguns como sinal de uma nova economia —flexível, móvel, operando em rede. O financista e filantropo internacional George Soros argumenta que transações tomaram o lugar dos relacionamentos na economia moderna.  Diversos estudos enfatizam essas tendências mundiais ao imediatismo ou ao predomínio do episódico —nos relacionamentos pessoais, na dinâmica familiar, nas redes sociais, no trabalho. O sociólogo Richard Sennett escreve sobre a ascensão “do trabalho de curto prazo, episódico e por contrato”. O emprego vitalício do passado, ele argumenta, foi substituído pela empreitada de pequena duração.

8. A cultura imediatista das empresas está produzindo uma erosão generalizada da relação de confiança que os trabalhadores desenvolviam com seus locais de trabalho. Em um mundo empresarial no qual todos estão sempre pensando em seu próximo passo na carreira ou se preparando para grandes mudanças, é muito difícil —e em última análise, pode se provar disfuncional— manter lealdade em relação a uma dada organização. Autores como Sennett veem a flexibilidade exigida por empresas multinacionais como demonstração da realidade da globalização, que promove a concepção dominante dos indivíduos como descartáveis. É diante desse pano de fundo sociológico que ele cita estatísticas segundo as quais o universitário americano médio que se formar hoje ocupará uma dúzia de empregos diferentes ao longo de sua carreira e terá de mudar sua capacitação profissional ao menos três vezes. Não admira que o capitalismo flexível tenha seus descontentes, para os quais se torna desagradavelmente claro que os supostos benefícios do livre mercado estão cada vez menos aparentes.

9. Em outra obra posterior, “A Cultura do Novo Capitalismo”, Sennett discorre sobre as consequências emocionais mais profundas das grandes mudanças organizacionais: “As pessoas temem se ver deslocadas, marginalizadas ou subutilizadas. O modelo institucional do futuro não lhes oferece uma narrativa de vida no trabalho, ou uma promessa de grande segurança no reino público”. Da mesma maneira que o capitalismo flexível se engaja em reestruturações organizacionais incessantes, as pessoas fazem o mesmo —empregados, empregadores, consumidores, pais e filhos. Don DeLillo escreve que o capitalismo mundial gera transformações à velocidade da luz, não só em termos do movimento súbito de fábricas, migrações em massa de trabalhadores e transferências instantâneas de capital líquido, mas em “tudo, da arquitetura ao tempo de lazer, à maneira pela qual as pessoas comem, dormem e sonham”.

10. Ao refletir sobre as maneiras complexas pelas quais nossas vidas emocionais são alteradas pelas mudanças socioeconômicas causadas pela globalização, busco expandir a gama de transformações mencionadas por DeLillo, tomando por foco as experiências mutáveis das pessoas quanto a identidades, emoções, afetos e corpos como resultado da difusão do novo individualismo. Meu argumento é que forças globais, ao transformar as estruturas econômicas e tecnológicas, penetram no tecido de nossas vidas pessoais e emocionais. A maioria dos autores concorda que a globalização envolve uma reformulação dramática das fronteiras nacionais e locais. As viradas repentinas do capital de investimento, a expansão transnacional da produção multipropósitos, a privatização de instituições governamentais, o remodelamento incessante das finanças, a ascensão de novas tecnologias, a instável energia dos mercados de ações que funcionam 24 horas: essas imagens do capitalismo multinacional põem em foco a dimensão da reconstrução imposta ao planeta a cada dia.

11. Venho sugerindo que essas mudanças se infiltram profundamente na vida cotidiana e afetam um número crescente de seres humanos. Os valores da nova economia mundial cada vez mais estão sendo adotados pelas pessoas para remodelar suas vidas. A ênfase está em viver ao estilo do contrato de curto prazo (naquilo que vestimos, nos lugares em que moramos, na forma como trabalhamos), em transformações cosméticas incessantes e na melhoria do corpo, na metamorfose instantânea e nas identidades múltiplas. Esse é o campo da sociedade da reinvenção, que continua a se espalhar pelas polidas e dispendiosas cidades do Ocidente, e mais além.