02 de fevereiro de 2022

CARTAS REVELAM CAOS FINANCEIRO DE JAMES JOYCE E PERCALÇOS DE ‘ULISSES’, QUE FAZ 100 ANOS!

(Dirce Waltrick do Amarante, tradutora e professora da UFSC – Folha de SP, 29) Em 29 de abril de 1927, a norte-americana Sylvia Beach (1887-1962), dona da famosa livraria parisiense Shakespeare and Company e responsável pela publicação do agora centenário romance “Ulisses”, do escritor irlandês James Joyce, escreveu a seguinte carta a ele:

“Tenho refletido sobre a questão das suas finanças. Estava impossibilitada de pensar nelas claramente na sua presença por conta do feitiço lançado por seu gênio e da morosidade da minha aritmética.

Você disse que tinha apenas 9.000 francos por mês para viver e então eu lhe lembrei que Ulisses lhe rendera 125.000 desde o último agosto. Isso dá cerca de 12.000 francos por mês, não é, que somados aos 9.000 totalizam cerca de 21.000 francos por mês. Você não considerou os direitos autorais de Ulisses importantes o bastante para mencionar. Mas teria sido mais correto de sua parte confessar que vem gastando esse montante de dinheiro considerável do que contar um monte de histórias da carochinha para mim que sou sua amiga, se algum dia você teve uma. Você é o maior escritor vivo, mas até Pound tem mais juízo. Ir a um agiota. Os Brandleys não podem ter uma falsa noção de suas circunstâncias maior do que você mesmo tem. Mas o que isso importa? Com os mais sinceros cumprimentos,

Atenciosamente,

Sylvia Beach”.

Dessa carta vem o título do livro, publicado no final de 2021 pela Brill/Rodopi e organizado por Ruth Frehner e Ursula Zeller, “Your Friend If Ever You Had one: The Letters of Sylvia Beach to James Joyce” (sua amiga, se um dia você teve uma: as cartas de Sylvia Beach para James Joyce), ainda sem tradução para o português.

O volume traz as cartas da editora para o seu autor e um extenso aparato bibliográfico e crítico, entre textos e notas, de autoria das organizadoras, o qual lança luz não só sobre a relação entre eles, mas também sobre a relação entre Joyce e outros amigos que igualmente foram fundamentais para a sua carreira.

Entre esses amigos, cabe citar Adrienne Monnier (companheira de Beach), Paul Léon, Ezra Pound e Harriet Shaw Weaver, responsável pela publicação de “Um Retrato do Artista quando Jovem” e considerada a grande mecenas do escritor. Weaver deu a Joyce as condições financeiras de que ele precisava para seguir escrevendo. Muitas vezes, ela forjava direitos autorais de vendas de livro para lhe depositar quantias que garantissem o sustento da família dele.

A vida financeira de Joyce é tema de muitas cartas. O escritor era perdulário: viajava de primeira classe (enquanto Beach e Monnier iam na terceira classe), ficava em hotéis de luxo, gastava em bons restaurantes, dava presentes caros aos amigos etc. Portanto, não foram raras as vezes que o romancista escrevia a Beach pedindo-lhe mais dinheiro.

Em uma das cartas, a editora o acalma, dizendo-lhe que ele não precisaria se estressar nas suas férias, pois a srta. Weaver, com quem ela estava sempre em contato, havia aparecido novamente com “47 mil francos! Que mulher extraordinária”, mas Beach não fica atrás.

Joyce e sua futura editora se conheceram no verão de 1920 em uma festa. Na época, sua livraria, Shakespeare and Company, estava de portas abertas havia um ano e Beach já era conhecida entre os escritores locais e estrangeiros, muitos norte-americanos que haviam se mudado para Paris, tal como Gertrude Stein, Ernest Hemingway e Ezra Pound.

Foi em 1921, contudo, ao saber das dificuldades com a publicação de “Ulisses” que Beach resolveu lhe perguntar: “Você permitiria que a Shakespeare and Company tivesse a honra de publicar seu Ulisses?”. Ela conta em suas memórias, “Shakespeare and Company: uma Livraria na Paris do Entre-guerras”, publicado pela Casa da Palavra em tradução de Cristina Serra, que Joyce “aceitou a oferta sem titubear e em júbilo. Achei temerário de sua parte confiar seu grande Ulisses a uma editora tão pequena e inusitada. Ele parecia, entretanto, encantado, e eu também”.

Desde sua publicação, em 2 de fevereiro de 1922 até maio de 1930, o romance chegou a sua 11ª edição com 28 mil cópias impressas. A partir daí, Beach não cuidou mais da venda do livro, mas seguiu ajudando Joyce, agora também com seu novo título, “Finnegans Wake”.

Vale lembrar que, em 2 de fevereiro de 1922, Joyce completaria 40 anos de idade e Beach queria lhe dar de presente a publicação de “Ulisses”. Ela conseguiu que Maurice Darantière, responsável pela impressão do livro, lhe enviasse dois exemplares: um ela entregou a Joyce, e o outro ela colocou na vitrine da sua livraria —logo muitos leitores e curiosos estavam lá para ver o tal livro que já causava um rebuliço na literatura.

Joyce celebrou a chegada de “Ulisses” com um poeminha jocoso para a sua editora, que pode ser lido no livro “Shakespeare and Company”. O poema ganha agora uma nova tradução, assinada por Vitor Alevato do Amaral.

Alguns versos, na tradução dele, dizem: “A multidão vinha animada/ E pré-comprava o tal Ulisses,/ Mas ia embora ensimesmada./ À Sylvia cante toda a gente,/ Pois o seu tino é inclemente;/ Com sua lábia, de repente,/ Fez livro chato ter cliente./ Que a clientela só aumente”. Esse e outros poemas do escritor irlandês serão publicados no livro “Outra Poesia” (Syrinx), organizado e traduzido por Amaral.

Nos dez anos em que Beach esteve à frente da publicação de “Ulisses”, ela não foi apenas a editora de Joyce —foi também sua secretária, confidente, corretora, contadora, entre muitas outras funções que assumiu, como se pode verificar nas cartas que ela lhe enviou e que constam desse volume.

Em 26 de junho de 1923, Beach descreve detalhadamente a Joyce, que estava em Londres, o interior de um apartamento que ela encontrou, a pedido do escritor, em Paris, para a família dele: “primeiro andar acima do mezanino! Um apartamento soberbo, magnífico, 5.500 francos por ano. Sala de estar grande –
sala de jantar – pequena sala de estar – cozinha na frente – quarto grande e dois outros quartos quase tão grandes nos fundos […]. Lareiras amplas e janelas bem grandes. Você poderia usar um quarto grande nos fundos como um escritório”.

Mas, em outra carta alguns dias depois, Beach conta que Giorgio, filho de Joyce, foi ver o apartamento e achou que talvez os pais não fossem gostar muito por “não ser muito moderno”. Além disso, ele estava “se sentindo bastante enojado com essa cidade justo agora depois das experiências desagradáveis dele no banco e ele diz que vocês todos podem muito bem se mudar para a África se ele não encontrar um apartamento perfeito aqui”.

Em uma correspondência de 16 de julho de 1924, Beach relata a Joyce uma discussão que teve com um dos tradutores de “Ulisses” para o francês, um jovem chamado Jacques Benoist-Méchin, que traduzia em colaboração com Léon-Paul Fargue.

Para ela, “seed cake” (bolo de sementes, literalmente), que aparece duas vezes no romance, deveria ser traduzido como “gâteau aux amants”, mas Fargue, segundo Beach, não havia gostado da ideia.

Prossegue: Adrienne acha que “’brioche’ tenha a ver com isso se você concordar. Fargue fez uma ótima visita a um amigo cuja mulher é confeiteira, mas ele não achou nada no repertório dela que correspondesse a um ‘seed cake’”.

As cartas revelam sempre o quão importante Beach foi na vida dos Joyce, pois, afinal, acabou, como outros amigos do escritor, se preocupando também com o bem-estar de toda a sua família.

Não bastassem todas essas funções, Beach teve que lidar com as inúmeras “revisões” do livro feitas por Joyce. Na verdade, o escritor fazia mais que revisões, segundo seus estudiosos: “ele era um inventivo reescritor do mesmo material” e isso atrasava o trabalho e implicava custos extras, pagos por Beach. Além disso, a editora ainda teve que enfrentar as constantes censuras sofridas pelo livro, as quais começaram antes mesmo da publicação integral da obra sob a sua responsabilidade.

Beach estava consciente do problema que “Ulisses” criou para as editoras da revista Little Review nos Estados Unidos, Margaret Anderson e Jane Heap, que estavam publicando fragmentos do romance em sua revista. Ambas foram processadas e condenadas a pagamento de uma multa de 50 dólares cada por publicarem “obscenidades”. Este foi só o começo de uma publicação e de uma distribuição confusas que, se não fossem em grande parte o apoio e a dedicação de Sylvia Beach, poderiam fracassar.

A história editorial tumultuada de “Ulisses” rendeu alguns livros. Talvez o mais conhecido seja “The Scandal of Ulysses” (o escândalo de Ulisses), de Bruce Arnold, também sem tradução para o português. As correspondências entre Joyce e Beach foram trocadas durante as férias de verão dele ou dela. Por isso, não são muitas, mas são intensas.

Em suas memórias, Beach lembra que “a maioria das cartas que recebi de Joyce foi, claro, escrita durante as minhas férias de verão ou durante suas próprias viagens. Evidentemente, ele sempre exigiu respostas ‘até amanhã’, ‘expressas’, ‘no retorno do correio’. Geralmente, estava precisando de dinheiro e, quando eu não estava, em geral conseguia algum por meio de Myrsine”, funcionária da livraria.

Aliás, Joyce não gostava muito quando Beach e Monnier se afastavam, e como ela lembra, “à medida que se aproximava o momento da nossa partida, ele ia mergulhando em um estado de pânico até que, no último minuto, saía-se com o que chamava de sua ‘lista de compras’ — em que arrolava tudo o que eu devia fazer antes de deixar a cidade”.

Beach não o decepcionava e só decidiu se afastar da publicação de “Ulisses” porque sua intermediação estava travando a negociação de Joyce com outras editoras. A partir daí, Paul León, um judeu russo “fascinado pelo processo criativo de Joyce”, assumiu essa função.

Em “Your Friend If Ever You Had one”, há também cartas enviadas por Beach a Paul Léon. Nelas, a editora o coloca a par da história editorial de “Ulisses” e de outros livros com os quais estava trabalhando. Ela envia-lhe também as cartas para Joyce que ainda eram endereçadas para a sua livraria.

Uma delas é uma carta de Yeats, que Beach encaminha a León, comentando que Joyce tinha razões em não aceitar o convite de Yeats para fazer parte da Academia Irlandesa de Letras, o qual ele recusou declarando: “Não vejo nenhuma razão por que o meu nome deveria ser trazido à tona em conexão com tal academia”. Mas, para Beach, como diz na carta, “não iria fazer mal algum aceitar, e isso poderia ser o primeiro passo no sentido de suspender a censura a Ulisses”.

Beach acompanhava atenta a carreira de Joyce, e o escritor tinha consciência disso. Mesmo depois de romper com a editora, ele sabia que “tudo o que ela fez foi me dar de presente os melhores dez anos da sua vida”.

As cartas que compõem o presente volume, juntamente com outros documentos, foram doadas à Fundação James Joyce de Zurique por Hans Jahnke, filho de Asta Osterwalder Joyce, segunda mulher de Giorgio Joyce, filho do escritor.