BICENTENÁRIO DE ANITA GARIBALDI: DEBATE IDEOLÓGICO EM TORNO DO LEGADO DA REVOLUCIONÁRIA!
(Folha de SP, 29) O convés do navio comandado por Giuseppe Garibaldi (1807-1882), sob ataque das tropas imperiais brasileiras, começava a ser coberto por tripulantes caídos, mas Anita, apelido dado pelo italiano à Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva, seguia na primeira linha de atiradores.
Mesmo com a batalha escalando em mortos e feridos, ela seguia na proa, entre dois marinheiros, “de fuzil ao peito”, exposta “às balas do inimigo” e atirando, escreveu Lindolfo Collor, avô do ex-presidente e hoje senador Fernando Collor, em “Garibaldi e a Guerra dos Farrapos”, livro de 1938 sobre a revolta ocorrida no sul do Brasil entre 1835 e 1845.
A cena é mais uma a ilustrar, em tintas carregadas, Anita Garibaldi em batalhas -com cerca de 18 anos, de origem pobre, ela se juntou à revolta e partiu de Laguna (SC) para lutar ao lado de Garibaldi, por quem se apaixonou, apesar de oficialmente ser uma mulher casada. Um escândalo para a época.
Anita já foi samba-enredo no Carnaval do Rio de Janeiro, interpretada na TV por Giovanna Antonelli e no cinema por Anna Magnani, atriz do neorrealismo italiano, e é uma das poucas mulheres brasileiras nas páginas de aço do “Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria”, exposto na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Às vésperas da data que marca 200 anos de seu nascimento, algumas vitrines da sua terra natal, onde o nome de Anita está em museu, rua, autoescola e restaurante, colocaram manequins vestidos como ela, a maioria com uma arma a tiracolo.
Sua memória no bicentenário se divide em eventos e na discussão de como os valores defendidos por ela se colocariam no polarizado Brasil de 2021.
A data de nascimento, 30 de agosto de 1821, foi reconhecida pela Justiça de Santa Catarina no final dos anos 1990 depois de um processo movido para que se criasse um documento atestando que Anita era brasileira, já que sumiram todos os registros oficiais, como o livro tombo da igreja onde foi batizada.
“Em nome das lojas maçônicas, da Câmara de Vereadores, da Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina) e do próprio Instituto Anita, na época, fundação, pedimos que se reconhecesse o nascimento tardio de Anita”, conta Adílcio Cadorin, advogado e autor de livros como “Anita – Guerreira das Repúblicas e da Liberdade”.
“Fomos ao cartório e registramos o nascimento dela 178 anos depois de ela ter nascido”, acrescenta ele.
Ex-prefeito de Laguna, Cadorin participou da criação do movimento separatista O Sul É Meu País –do qual se afastou. Diretor do Instituto Cultural Anita Garibaldi, é visto como o principal divulgador da memória dela hoje.
A Guerra dos Farrapos foi iniciada no vizinho Rio Grande do Sul devido à insatisfação de estancieiros com os tributos cobrados sobre o charque gaúcho, e levou à proclamação de duas repúblicas, a Piratini, no Rio Grande do Sul, e a Juliana, em Santa Catarina, com a tomada da Laguna de Anita.
Simpática aos valores republicanos, por influência do tio, Anita cresceu montando a cavalo como os homens, com uma perna de cada lado, e com fama de indômita. Uma das histórias sobre ela diz que chegou a dar um golpe de chicote em um homem que a assediou e comunicou à polícia o ocorrido.
Com a mãe viúva e irmãos pequenos, foi convencida a se casar com um sapateiro da cidade no dia em que completou 14 anos. Manoel Duarte, conhecido como Manoel dos cachorros, que lutou ao lado do Império, teria a deixado antes da chegada de Garibaldi à cidade, afirma Cadorin.
Ao lado do italiano, com quem Anita se casou depois no Uruguai, em um intervalo de dez anos, ela engravidou cinco vezes e participou ativamente da luta pela unificação da Itália.
“Anita era um espírito livre e lutador, mas certamente, a partir das ‘Memórias de Garibaldi’, especialmente na versão de Alexandre Dumas, os traços corajosos e heróicos de Anita se acentuaram. Se Garibaldi pretendia propor uma mulher, ainda mais imprudente do que os homens para incitar os italianos na luta patriótica, Dumas estava construindo o casal romântico perfeito de amor e revolução”, avalia a italiana Silvia Cavicchioli, autora de “Anita – Storia i Mito di Anita Garibaldi” (Einaudi, 2017, sem versão em português).
“Na decisão de deixar os filhos, de cruzar a Itália sozinha para chegar ao parceiro, está toda a natureza não convencional e rebelde de Anita.”
Em maio, em meio à pandemia de Covid-19, a estátua dela no centro da praça República Juliana, em Laguna, amanheceu segurando uma placa escrita “Fora Bolsonaro genocida”. No Instagram, a conta @anitasemlimites publicou um registro e a legenda: “Um dia empunhei minha garrucha contra o imperialismo, hoje levanto minha bandeira contra o fascismo! Prazer, Anita Garibaldi”.
Os comentários se dividiram entre elogios à ação e quem a considerasse vandalismo e desrespeito à memória de Anita.
“Fala sério que essa gente acha que eu apoiaria o fascistoide militar se tivesse andando por terras brasilis nos dias atuais”, diz a pessoa por trás do perfil, que responde dizendo ser a própria Anita a falar. Ela não quis se identificar.
“Sorte dele que hoje os tempos são outros, há cento e tantos anos, resolvemos as coisas de outra forma com o pessoal uniformizado que falava em nome da nação. Bolsonaro é a escória. E como diria Giuseppe, ‘socialismo é o sol do futuro'”.
A usuária responsável pela conta, se fazendo passar por Anita, diz não estar contente com os eventos em torno de seu bicentenário. “Me parece que querem me colocar como uma conservadora”, diz ela.
O prefeito Samir Ahmad, que considera que Anita “cada dia mais serve de modelo”, diz que o direito de expressão deve ser assegurado, mas não se pode destruir imagens para reconstruir a versão que se quer da história -a estátua não parece ter sido danificada na intervenção.
“Maturidade política não pode ser confundida com deturpação da história. Que a liberdade de expressão fique restrita à esfera das palavras e discussões sem imposição de nenhuma forma. A cada quatro anos temos novos eleitos, que seja feita e respeitada a vontade do povo, como defendeu a nossa heroína.”
Eleito pelo PSL, ele deixou o partido há poucos dias e diz que deve seguir o governador Carlos Moisés, que também saiu da sigla. “Votei no Bolsonaro e até posso votar novamente, porém, isso não significa que convergimos em tudo.”
“[Hoje, Anita] seria uma republicana, democrata, defenderia liberdade, igualdade social, igualdade entre mulheres e homens, o que ela sempre exigiu do Garibaldi. Ela nunca se colocou acima dele, mas do lado”, diz Cadorin, que avalia que Bolsonaro está fazendo a coisa certa, mas dizendo coisas erradas.
“Anita foi uma mulher muito à frente do seu tempo, que rompeu paradigmas. E que teve que enfrentar questões que hoje assolam a mulher moderna, como a maternidade versus o desejo de se realizar em outros espaços, mais masculinos”, diz Leticia Wierzchowski, autora dos livros “A Casa das Sete Mulheres” e “Travessia”, sobre Anita e Garibaldi.
Anita morreu em 4 de agosto de 1849, aos 27 anos, grávida do quinto filho e perseguida por tropas austríacas na Itália. E continuou rendendo histórias.
Com a roda quebrada da charrete que levava o corpo, os homens que fariam seu enterro amarram uma corda no pescoço do cadáver e o arrastaram, antes de deixá-lo em uma cova rasa. O corpo foi encontrado dias depois e abriu uma investigação de homicídio, que gerou rumores de que o próprio Garibaldi a teria matado.
Em entrevista à Folha de S.Paulo em 1999, o jornalista Paulo Markun, que escreveu “Anita Garibaldi – Uma Heroína Brasileira”, disse: “O legista cometeu um engano ao imaginar que ela teria sido estrangulada. Mas, num primeiro momento, esse boato chegou a se espalhar”.
Anita teve sete sepultamentos, sendo as duas últimas na repatriação que o ditador fascista Benito Mussolini fez de seus restos, que estavam na França.
“Em Ravena, onde ela morre, e em grande parte da Itália central, ela é muito amada e continua a existir um verdadeiro culto laico de Anita, um nome que ainda se dá às crianças em sua memória”, diz Silvia.